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Jorge Forbes

A decisão da viagem

(setembro, 2006) Estávamos no corredor da Clínica do Genoma. Uma senhora se destacava dos outros pais de ares constritos e pesarosos. Fátima esbanjava animação nas histórias que contava de sua terra e nas informações que prestava sobre seu filho Diogo, portador da distrofia de Duchenne. Diogo cursava a faculdade de sociologia, no último ano; no tempo em que os que se achavam doentes se preparavam para um triste fim, Diogo insistia no começo, com isso, retardando o fim.
Decidimos ali a viagem: valia a pena ir até Natal, onde eles moravam, documentar em filme esta história de vida.

Primeiro dia

(17/11/2006) Mayana Zatz e eu chegamos de táxi ao encontro marcado em frente à Biblioteca Central de Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde Diogo estuda. Sérgio Zeigler, o diretor do filme, já estava lá há uns quinze minutos, de câmera na mão, com Mariana Amaral de assistente, para registrar o momento do primeiro bom dia. Insólito. Diogo tal qual rei sentado em trono móvel, nos olhava esverdeadamente além, por trás de seus óculos panorâmicos e transparentes. A porta da Biblioteca Central fazia-lhe moldura de grandeza. Os estudantes entravam e saiam diminuindo o passo e a voz. Ao lado de Diogo, cenho fechado e guardião, um moço que se revelaria seu acompanhante, ferramenta para toda obra, acompanhava o que ocorria.

Cumprimentos feitos – Fátima não estava, tinha ido estacionar o carro, o que aumentava a intensidade muda do contato – Diogo resoluto acelerou sua cadeira calçada abaixo, nos conduzindo sem maiores explicações ao prédio vizinho onde deveríamos encontrar seus amigos. Meia volta para cá, meia volta para lá, fomos dar em uma sala onde nos deparamos com sua professora de Antropologia e seu grande amigo Jonathan. A professora, moça bonita, morena, cabelos cacheados longos e saia comprida, daquele jeito que um dia Telmo Martino apelidou de “bata e bolsa”, a professora saiu apressada pelo canto da câmera, voltando tão depressa quanto, esclarecendo a idéia de Freud que o tímido quer aparecer.
– Professora, dissemos, podemos conversar um pouquinho?
– Ah, difícil, tenho tanto trabalho para fazer…
Pensei quão folgados nós éramos aos olhos daquela trabalhadora incansável.
Mas não foi necessária muita insistência para gravarmos seu sorriso e seu depoimento. Para o desalento de Fátima, a professora – puxa!, não sei seu nome – a professora preferiu destacar o aspecto bagunceiro de Diogo, que lhe ouvia em clara indiferença sorridente. Foi aí que se aproximou Jonathan. Um pouco avantajado de abdômen, moreno, muito simpático e transbordando em amizade franca por Diogo. A conversa rolou fácil e serviu para o degelo da frieza persistente desde a porta da Biblioteca. Ajudaram os exemplos de amizade que Jonathan dava, todos calcados sobre as experiências cúmplices de burlar as normas chatas. Os dois riam muito, minhas intervenções os provocavam. Nem um nada de paralisia foi lembrado. Só as aulas, as festas, as meninas, a música, os planos.
Seguimos corredor afora atrás de novos colegas. Encontramos Andressa, exemplar de beleza dura da região nordestina. Com ela, ao contrário de Jonathan, foi só o politicamente correto, a indignação, o governo que não faz nada, a falta de rampas, de corrimão – sim, pois há que se pensar nos outros deficientes também, como os cegos, perora com propriedade. Andressa quer emprestar sua voz muito além de Natal, província pequena sem espaço para formar o eco de suas lutas. E ela já as vê muitas, esta Quixota que pensa não ter tempo para homem. Ao final, beija a mão de Diogo, explicando que não existem diferenças de sexo.

Enquanto isso, sentada no banco, ao meu lado, Fátima infindava, entrecortada pelos passantes e por mim, sua história de amores para a qual os espinhos são só trampolim. Falou e falou da cidade pequena de sua infância – hoje sob as águas de uma represa – dos seus dez irmãos, dela ser a mais velha e de ter querido adotar todos quando sua mãe morreu no parto do Donato, seu irmão-filho favorito. Contou do moço rico com fazenda para abrigar todo mundo, que queria casar com ela, que ela até namorou mas não casou. Literalmente: não dava.
Falou de sua ida para Natal, do primeiro emprego no jornal dos conhecidos do pai e do encontro com o gráfico João. Quanta coisa ela aprendeu com o João: de música, de livros, de aproveitar a vida. João ia casar com outra, acidente de percurso que em nada mobilizava Fátima de querer sua companhia. Um dia, João já casado, pois ele não foi tão forte quanto ela que preferiu seu desejo à fazenda ‘para todo mundo’, um dia ela descobriu que João não se opunha a ter filhos com ela, o que lhe revelou o quanto ela queria ser mãe. Tomou cuidado de avisar a toda a gente do que ia acontecer: família, colegas de trabalho e amigos, na esperança de que “coisa errada” anunciada, e não escondida, é menos errada; mandou ver, engravidou. Tinha muito medo de ter um filho com síndrome de Down, pois era professora e se dedicava aos excluídos. Nasceu seu primeiro filho, Diogo.
Fim do primeiro dia.

Segundo dia

(18/11/2006) Duvidei antes de fazer a pergunta, sabia que era uma aposta, mas não podia evitar e confiava na lógica do que Diogo já me tinha dito:

  • – Diogo, e as namoradas?

Amplo sorriso, é sempre amplo o sorriso de Diogo, olhar de extravio, e lá veio a resposta matreira:

  • – No momento não tem nada não (leia com sotaque nordestino) só uns beijos de ficar, mas sem maior seriedade. Tá bom assim.
  • – E a Andressa?
  • – Ah, se ela tivesse querido… mas tá tudo bem… nas festas… não dá para se queixar.

Convincente, absolutamente convincente.

Estávamos agora, na sala de entrada de sua casa. Neste dia, nosso programa era entrevistar intensa e exclusivamente Diogo e Fátima. Pelas duas paredes laterais vazadas por ‘brise soleil’ na vertical, uma brisa morna era dirigida sobre nós, amainando, só um pouquinho, o calor inimaginável de uma Natal equatoriana. A família se reunia discretamente, como convinha, no amplo terraço da entrada, recheado de poltronas e de três redes coloridas. Todos vestidos para dia de festa, para aparecer na televisão. Sim, é bom lembrar que não estávamos entrevistando um paciente, mas uma pessoa que soube por natureza espontânea, como nos explicamos Diogo e eu, atingir o cobiçado “savoir y faire avec son symptôme”, preconizado por Jacques Lacan.

Fátima teve papel fundamental nesse caminho: foi mãe-mulher e não mãe-enfermeira, mesmo que a situação parecesse exigir este papel. Claro que se angustiou, que quase desesperou, que engordou, mas na base não cedeu, se manteve cheia de desejo, o que lhe ensinou que frente a ele, desejo, todo mundo é diferente. Assim, nenhuma exceção para Diogo – a não ser as óbvias de locomoção – nenhuma exceção quanto à responsabilidade pessoal de se reinventar em sua singular diferença, de se re-significar: palavras dela, nada combinado comigo antes.

Mayana me pergunta se estou contente de ver minha hipótese confirmada; ela, sem dúvida está contente: achou uma ponte entre o laboratório onde confirma ou infirma suas hipóteses científicas, com as entrevistas de Diogo e Fátima. Diogo está bem, muito bem, porque não autorizou o sofrimento, nem em si, nem nos que lhe são caros. “Desautorizar o sofrimento” teve uma primeira evidência de comprovação científica, desde o psicanalista até o biologista.

Terceiro dia

(19/11/2006) O combinado era uma roda de bate-papo descontraído, perto da hora do almoço, quando já tivéssemos saído do hotel, indo para o aeroporto, uma vez que a casa de Fátima ficava a meio caminho. Mayana, que até então tinha falado menos, iria ser a mensageira da boa nova: a revista Nature, desta semana, anunciava sucessos promissores em testes de células-tronco em cachorros distróficos, na Itália.

Um microfone improvisado amarrado no teto marcava o centro da roda familiar reunida no terraço da entrada. Conhecemos mais uma parte dos irmãos de Fátima e de seus sobrinhos. Dois agregados muito íntimos foram admitidos, por serem ‘quase-família’. Fátima explicou seus esforços em manter à distância médicos neurologistas ávidos por uma casquinha de conversa com a grande geneticista, tão raramente vista naquelas paragens. Aliás, ela diz várias vezes que só acreditou que nossa presença ali era verdadeira porque a vida lhe ensinou a acreditar no impossível.

Fátima não fala, faz depoimentos. Conta dos acepipes preparados para o almoço-surpresa e o que cada um tinha feito, logicamente, depois de cuidadoso aprendizado com ela o que conferia um selo de qualidade: a galinha caipira, o camarão com queijo, o salmão grelhado, bem como os acompanhamentos: pirão, farofa, feijão verde, salada. Daí, passou a nos agradecer. Os agradecimentos eloqüentes de Fátima, naquela roda de conversa atenta e respeitosa, desencadearam o primeiro momento comovente. Seguiu-se um intervalo de reajuste da câmera e descontração geral. Veio, então, o clímax: Mayana anuncia o avanço na pesquisa do tratamento da distrofia, entrega para Fátima o artigo que escreveu nesta semana sobre o tema, e afirma que em menos de dez anos o tratamento será possível. Fátima nem sabe mais o que dizer, pois já tinha gasto muito na tradução anterior de seus sentimentos. Mas ela se renova e consegue se superar. Deixa entender, gaiatamente, onde tinha aprendido os termos re-significar e reinventar, o que não lhe diminui em nada a autoria do fato que só esperava a legitimação do conceito. Diz que foi em uma conferência minha no Senado. Hesitei em dizer, para não decepcioná-la, que havia sido só na Câmara.

Um moço pede a palavra e fala em nome dos moços. Ele é primo de Diogo, sua fala transforma todos ali em irmãos solidários. Um tio, sentado atrás da câmera do Sérgio, vê que eu vejo uma lágrima descer, em solavancos de tobogã, em seu rosto talhado no sol e no campo. Queria avisar o Sérgio, mas não havia como. Discretamente ele a enxugou com um dedo e, sem nada dizer, firmou um contrato de olhar: preferia calar seu sentimento. Assenti. Mais ao fundo, Mariana de olhos azuis faz o contrário: dá vazão perfeita à beleza de um choro de vida.

Diogo agora sabe que tem que agüentar mais uns poucos anos. Ele ainda nem está no bipap… Tem tempo sim, ora se não. Ri com seu estilo low-profile e me diz:

– Você já pensou, Doutor? Vou ter que aprender de novo a andar, a dançar, a correr; vai ser engraçado.

Jorge Forbes Natal, 19 de novembro de 2006