/O Homem Cordial e a Psicanálise

Jorge Forbes

A imagem do brasileiro é a de uma pessoa naturalmente simpática, extrovertida, prestativa, que se interessa imediatamente pelo problema do outro; de riso fácil, andar molenga, de tendência pacífica; amante da música, do sol e da multidão. Ainda a sua mais completa definição é aquela consagrada por Sérgio Buarque de Holanda: o brasileiro é o “homem cordial”.

“A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, diz Buarque de Holanda, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, em que permaneceu ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal”(1).

Resistem os brasileiros ao coercitivo da civilidade e “nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez”(2).

O oposto ao homem cordial seria o homem polido, e a polidez é, conforme o autor, “organização de defesa ante a sociedade; … equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções… é um triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social… a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo”(3).

Lendo Raízes do Brasil, o clássico de Sérgio Buarque de Holanda, compreende-se a distinção entre “cordial” e “polido” como derivada e equivalente às diferenças do tipo aventureiro encontrado em Portugal, Espanha e Inglaterra, e o tipo trabalhador, estável, predominante no resto da Europa. Haveria uma incompreensão radical entre ambos, muito mais do que oposição evidente. O primeiro desses tipos tinha como característica o ir além das fronteiras, o visar horizontes distantes. O segundo privilegiava a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar.
Nos aventureiros, “cada um é filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes…”(4).

“À frouxidão da estrutura social, à falta de hierarquia organizada devem-se alguns dos episódios mais singulares da história das nações hispânicas, incluindo-se nelas Portugal e Brasil”(5).

Não importam as tradições pois o que vale é mais “a eminência própria do que a herdada”(6).

Esses fatores contribuíram na criação do “homem cordial”. São características da cordialidade:

  • a) a intimidade: ah! como é difícil a um brasileiro se acostumar à sutileza da diferença do emprego do “tu” e do “vous” em francês e como lhe parece estranho, até mesmo caricato, a sucessão de meneios de cabeça dos japoneses. Verifica-se uma enorme dificuldade no respeito a um superior. “A manifestação normal de respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade”(7). É com facilidade que após quinze minutos de conversa dois brasileiros já “se contaram a vida toda”, como até mesmo se diz no jargão e, passada meia hora, se descobrem amigos de infância.
  • b) uso dos diminutivos: “no domínio da linguística esse modo de ser parece refletir-se em nosso pendor acentuado para o emprego dos diminutivos”(8), o que pode ocasionar frases tais como: – se eu me atrasar um pouquinho, você vai tomando um chopinho, com alguma comidinha ou então dá uma ligadinha… É a maneira de fazer tudo mais acessível, menor, próximo; uma vida que caiba na palma da mão; uma vidinha.
  • c) omissão do nome de família: quem foi criança no Brasil há de se lembrar seu pai perguntar: -”Mas esse seu amigo tem sobrenome? É José do quê?” e as crianças, sem entender, invariavelmente respondem: -”É José meu amigo, ponto.” E que dificuldade na hora de querer encontrar um telefone na lista. E quantas vezes nem o prenome se sabe, pois há trinta anos só se conhece o apelido. “Seria talvez plausível relacionar tal fato à sugestão de que o uso do simples prenome importa em abolir psicologicamente as barreiras determinadas pelo fato de existirem famílias diferentes e independentes umas das outras.” (9) Mais uma vez, para o aventureiro, não importa de onde se vem mas o que se é. Os estrangeiros acham estranho que no Brasil a ordem alfabética é a dos prenomes e, por sua vez, brasileiros ao serem chamados pelo nome de família não se sentem identificados, pois pode se tratar de um irmão, ou de um primo.
  • d) ética da emoção: qualquer forma de convívio há de ser ditado por uma “ética de fundo emotivo”(10); até mesmo concorrentes, antes de mais nada, têm a necessidade de ser amigos.

Nem mesmo os ritos religiosos e seus personagens escapam ao “horror às distâncias”(11) que parece constituir o traço mais específico do espírito brasileiro. Dizem que até a pompa do Vaticano, se no Brasil se instalasse, não resistiria à irreverência local e que em poucos dias o Papa teria um apelido camarada.
“A uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior… ninguém pediria que se elevasse a produzir qualquer moral social poderosa”(12), é o que explica, conforme Buarque de Holanda, o fato da República brasileira ter sido obra de positivistas, ou agnósticos e a Independência, realizada por maçons.

Por essas características, já houve quem, no Brasil, pensasse que a psicanálise, para aí se implantar, deveria sofrer um processo de tropicalização , tornando-a mais ao gosto da terra; que o estender a mão, o divã, etc, eram coisas boas para os povos frios e polidos; “coisa de austríaco”. Não perceberam que é outra a geografia da psicanálise, que não é ela mais própria ao polido que ao cordial, nem vice-versa.

Sérgio Buarque de Holanda não faz apologia do “homem cordial”, não o coloca no melhor dos mundos. Ele previne que “a vida em sociedade – para o brasileiro – é de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente de viver consigo mesmo” e profere a máxima : – “Ele é antes um viver nos outros”, concluindo, citando Nietzsche : – “Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro” (13).

Esta tipologia de imaginário social, do “homem cordial” e do “homem polido”, pode ser comparada, a meu ver, com o intuito de uma crítica psicanalítica, àquela lembrada por Jacques Lacan, em seu seminário sobre a Transferência, quando se refere aos tipos altruísta e egoísta. Desconfiem do altruísta, ele alerta. Não para preconizar o egoísmo, é claro, mas, se quanto a este não é necessário advertir o defeito, por ser evidente, o altruísta, em sua bondade, em sua piedade, no seu incansável querer bem ao outro pode aparecer como um virtuoso moral. “É que, de fato, o precioso Mitleid, o altruísmo, não passa da cobertura de uma outra coisa, e vocês vão observar isso sempre, sob a condição, todavia, de estarem no plano da análise”(14). Lacan exemplifica o altruísta através de um obsessivo que diz casar com a pobre garota – alusão a uma histérica – por piedade ou respeito, “ficando ambos aborrecidos por muito tempo”, porquanto, contrariamente ao que explica, “o que ele respeita, o que ele não quer tocar, na imagem do outro, é a sua própria imagem. Se a intatilidade, a intocabilidade dessa imagem não fosse cuidadosamente preservada, o que surgiria seria simplesmente a angústia”(15).

A pessoa que se concebe altruísta não se angustia em face de uma possível maldade que cometeria ao deixar a pobre garota. Uma, porque ela só é “pobre” e “garota” em sua imaginação, e a experiência é pródiga em mostrar a dureza das “pobres garotas”; e outra, mais fundamental, é que a sua angústia reside no confronto ao objeto do seu desejo, quando ultrapassa a queixa e a insatisfação cotidiana. O difícil é que em face do que se quer – quando se pode querer – surge o desamparo, o Hilflosigkeit freudiano, o estar só frente ao seu desejo. Uma pessoa está sempre acompanhada frente ao que não gosta, pois a reclamação é coletiva, daí os sindicatos. A opção desejante, por sua vez, é solitária; ela não se explica, se faz.

Há muito de altruísta no “homem cordial”, por isso nos permitirmos emparceirar Lacan e Buarque de Holanda. O psicanalista esclarece o que o historiador descreve como “o pavor de viver consigo mesmo”.
Esse pavor, podemos entender como oriundo da dificuldade para cada pessoa de sustentar o seu desejo, pois sendo este singular, não compartível, surge com facilidade a fantasia de exclusão, de ser abandonado pelo grupo, tribo, ou bando a que pertence; – “vão me matar…”, é um fantasma paradigmático.
Assim se expressa Lacan a respeito: “se a análise não conseguiu fazer com que os homens compreendessem que seus desejos, em primeiro lugar, não são a mesma coisa que suas necessidades, e, em segundo lugar, que o desejo apresenta em si mesmo um caráter perigoso, ameaçador para o indivíduo, que se esclarece pelo caráter evidentemente ameaçador que ele – o desejo – comporta para o bando; pergunto-me, então, para que a análise terá servido”(16).

Essa é então a nova forma de tratamento da angústia que a psicanálise propõe ao homem; levá-lo a sustentar o seu desejo, a não ceder no que deseja. Para atingir este ponto, é necessário atravessar o conforto das soluções coletivas, fantasmáticas; o fantasma é coletivizável, o sintoma é singular. Por isso é que o resíduo, o resto de uma análise é um sintoma, um saber fazer, um estilo singular.
Não pensemos que se nos ocupamos mais aqui com o cordial-altruísta, a vida seria mais fácil para o polido-egoísta, ou que este melhor suportaria o difícil de si mesmo. Ora, ao evitar o contacto com os outros, o homem polido perde a chance de descobrir que existem os outros. A sua solidão é falsa, pois vive no mundo dele mesmo, onde só o familiar, o “como lá em casa”, é valorizado.

Dizer também que a psicanálise se acomodaria melhor ao imaginário polido-europeu, por ser este mais adepto aos rituais de distância, de repetições dos encontros, das horas marcadas, seria tão falso quanto pensar que mais
adequada ela estaria ao imaginário cordial-brasileiro, porque com mais facilidade os brasileiros falam de sua intimidade.
A nenhum dos dois mundos pertence a psicanálise, daí dizermos que sua geografia é a de um campo, marcado por seu fundador, freudiano.

Inútil almejar que na terra do campo freudiano surja uma nova proposta de convívio melhor que a cordialidade e a polidez criticadas. Só podemos esperar que ao final de uma análise uma pessoa possa ter-se despojado de identificações imaginárias embaraçantes, estorvantes, e prove uma maneira peculiar de fazer passar na lógica deste mundo um quê de seu desejo, sem sufoco, mas sem por isso desprezar a cordialidade e a polidez.

Bibliografia

  • 1. BUARQUE DE HOLANDA, S., Raízes do Brasil, José Olympio Ed., Rio de Janeiro, 24 ed., 1992, p.106
  • 2. ________________________, p. 107.
  • 3. ________________________, p. 107 e 108.
  • 4. ________________________, p. 4.
  • 5. ________________________ , p. 5.
  • 6. ________________________, p. 9.
  • 7. ________________________, p. 108.
  • 8. ________________________, p. 108.
  • 9. ________________________, p. 109.
  • 10. _______________________, p. 109.
  • 11. _______________________, p. 110.
  • 12. _______________________, p. 111.
  • 13. _______________________, p. 108.
  • 14. LACAN, J., O Seminário – Livro 8 – A Transferência, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1992, p. 352 (No original: Le Transfert, Seuil, Paris, 1991, p. 423).
  • 15. ________ , p. 352 (No original : p. 423).
  • 16. ________ , p. 356 (No original : p. 428).