/Do insulto e do elogio

 

Pobres daqueles que acreditam em insultos e desconfiam de elogios…

 

Existe, eu diria, um fascínio, uma sedução, uma hipnose no insulto. As pessoas ficam hipnotizadas ao serem insultadas. Ao contrário do elogio, que é sempre questionável, o insulto não deixa dúvida sobre seu alvo. Há uma tendência a dar peso de verdade ao insulto e a desconfiar do elogio.

Fomos ensinados a não tomar para nós os elogios, a justificá-los como conseqüência dos atos de outras pessoas, que nos ajudaram, ou à sorte, ao acaso. A boa educação manda dizer: “Não é bem assim”, “Não é tanto”, “É porque sou seu filho”, “Caiu nas minhas mãos”. Se por um lado desconfia-se do elogio, por outro ninguém põe o insulto sob suspeita. Ele é certeiro.

Por estar prestando uma “homenagem”, aquele que elogia se põe a serviço do elogiado: ele se faz “homem a serviço de”. Quem elogia freqüentemente é criticado pelo que disse. Corre um risco porque, ao elogiar, fala mais de si que do outro: “Não seja bajulador” “Bonita, ela? Ora, você está cego!”, “Mas como você foi falar uma coisa dessas?!”, Você vai votar nesse cara?”.

Já quem insulta não fala de si. Em geral, o insultante é visto como tendo razão, ele é honesto, é verdadeiro. Por quê? Porque quem insulta toca o ser do outro. O prazer de receber um nome pode ser maior que o desprazer provocado pelo qualificativo desse nome. Quando alguém diz “filho da mãe”, o insultado pode não sentir o destrato o suficiente e dizer que ser filho da mãe não é tão grave. Mas se o outro insiste e completa a frase usando a expressão “de uma prostituta”, ele pode reagir e dizer que o insultante exagerou. Da mesma maneira que entre a vítima e seu carrasco, há certa cumplicidade entre o insultado e o insultante. A cumplicidade deriva do fato de o insultado ter recebido um nome. É melhor ser “filho da mãe” do que não ser nada, base do dito “Falem mal, mas falem de mim”.

Muitas pessoas dedicam suas vidas a fazer com que se fale mal delas. Nos antigos festivais de música popular brasileira, Sérgio Ricardo conseguia ser vaiado no começo, no meio e no fim de cada apresentação. Outras pessoas, ao contrário, não admitem o insulto. Numa conhecida apresentação no Rio de Janeiro, Caetano Veloso, elegantemente vestido, ficou furioso e sentiu-se insultado quando alguém lhe disse para tirar a gravata.
Há certo prazer, uma cumplicidade do obsessivo com o insulto. Freud pensava que tal prazer o defende da paranóia. Ao escutar alguém dizer que ele é filho da mãe, o obsessivo imagina que podia ter sido pior. O insulto o defende do superego terrível, sempre pior do que qualquer insulto social. Nada como o superego para insultar, quando se é complacente com ele.

Os homens, de certo modo, são mais dóceis ao insulto do que as mulheres. Lembro-me da cena inicial do filme Full Metal Jacket, de Stanley Kubrick. O sargento perfila os recrutas e pergunta a cada um o seu nome. O loirinho com cara de bobo diz:

— Sou do interior dos Estados Unidos, chamo-me Michael Blackson e estou aqui para servir aos Estados Unidos da América.

O sargento retruca:
— Você não é nada disso, você é um canalha.

O rapaz responde:
— Sim, senhor.

Assim percebe, no momento em que recebe o insulto, que foi admitido no exército.

O insulto está presente em comunidades cujos membros têm identificação pouco clara. Se o insulto marca o ser, quanto menos clara for esta marcação, maior a possibilidade de marcação do insulto. Na comunidade analítica, que toca ao psicanalista de perto, o insulto tem história. Poderíamos dizer que os cem anos da psicanálise foram cem anos de insultos, difamações e injúrias. O psicanalista, talvez por força do hábito, tem outra maneira de responder à vacuidade do ser e à complacência em face do insulto.

Nota-se uma diferença fundamental entre um congresso de psiquiatras e outro, de psicanalistas. Os primeiros discutem os mais variados temas, menos o que é ser psiquiatra. Eles sabem: é alguém que fez seis anos de medicina, dois ou três de especialização, e deu provas de sua pertinência no campo da saúde mental.

Poderíamos dizer o mesmo de psicólogos, engenheiros, advogados, administradores de empresas. Todos sabem quem são esses profissionais. Mas… e o psicanalista? A extensão do conceito de psicanálise é cheia, mas a intenção é vazia.

Sabemos que existem psicanalistas, no plural. Difícil é definir o singular. Querer detectar a diferença entre eles é deparar com a dificuldade de apreender a essência. Freud, Lacan, Melanie Klein, Balint e Winnicott foram psicanalistas, mas o que possuíam em comum na maneira de ser, de escrever, de conduzir as análises? No entanto, todos foram psicanalistas.

Em congressos, não se pára de discutir o que é ser um psicanalista. É comum o caso daquele que duvida um pouco sobre se é ou não psicanalista, mas tem absoluta certeza de que os outros não são. Vivem dizendo o que falta ao outro para sê-lo: “Falta mais análise”, “Se tivesse feito uma supervisão melhor…”, “Se estudasse mais…”.
Depois de apontar falta de análise, supervisão e estudo, chega-se a uma palavra mágica para dizer o que falta aos analistas: falta ética. Acha-se que ética é uma qualidade do ser, um estado. E nesse momento, nessas comunidades, vemos o insulto em todo esplendor.

O insulto pode ser um tema de referência aos questionamentos da “Segunda clínica de Lacan”, “Clínica do gozo”, “Clínica do sintoma”, que se ocupa de saber das possibilidades de a palavra captar algo do ser.
Retomo as conseqüências de um caso clínico, descrito em meu trabalho “Ridículas palavras recalcadas”, já comentado neste livro. Trata-se da história de José, um latino-americano que se sentia burro comparado aos dois brilhantes irmãos. Em conversas familiares, sempre que tentava falar, ouvia do pai ou dos irmãos que, para expressar sua opinião, teria antes de fazer um curso na USP. José então saiu de seu país, foi para São Paulo, estudou na USP e tornou-se professor nessa universidade.

Ao assistir Forrest Gump, ele se identificou com o personagem — o idiota que dá certo — e começou a se questionar se não teria havido outra maneira de dar certo na vida sem precisar, necessariamente, de um curso na USP. Por que todo aquele exaustivo percurso quando o personagem do filme, “tão idiota quanto ele”, tinha grande sucesso? José descobriu assim a origem, os motivos que o levavam a fazer análise: o fato de se sentir sempre aquém de um projeto. Mesmo se dando conta de suas realizações, ele se sentia aquém de algo. Vivia angustiado, tinha sintomas gástricos sérios, insatisfação e irritação freqüentes, problemas no relacionamento amoroso.

Entendeu, ao assistir a Forrest Gump, a origem de seu mal-estar, concluindo haver encontrado a verdade de sua própria história. Tinha sofrido com os ideais familiares. Ao se submeter à cultura uspiana, pagou com o próprio corpo aquele ideal e, ao perceber isso, pensou que poderia viver de um jeito mais flexível, com menos censura a respeito de suas realizações.

Depois de sair do cinema, chorou a noite toda, muito sensibilizado com o que tinha vivido. Na primeira sessão de análise, no dia seguinte, contou o ocorrido, poderíamos dizer, numa entrega total: “Essa é a minha verdade!” Assim que terminou o relato, a sessão foi interrompida. Chateado com a falta de recepção, de cumplicidade, de solidariedade e de apoio ao seu “material” — como se chamava antigamente –, José saiu do consultório.

Como a mãe que entrega seu bebê nas mãos de outra mulher e esta exclama “Que bonitinho!”, abrindo os braços, José viu cair o bebê, que esperava depositar nos braços do analista-mãe. Voltou para uma segunda sessão, profundamente desconfiado. Já sabia que não podia entregar-se àquela verdade com tanta emoção. Relatou novamente a história, como se fosse um advogado de si mesmo.

Essa segunda sessão poderia ser dividida em dois momentos. No primeiro, José perguntou ao analista por que a sessão fora interrompida e 0-recebeu como resposta:
— Porque eu achei que devia.

O segundo momento — logo depois de ele relatar o que sabia sobre sua verdade e seu mal-estar — é o da interpretação, a meu ver, marcante nesse tratamento:
— Você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo.

Alguém poderia pensar: onde está o insulto, se não houve injúria nem difamação?

Na origem, o termo “insultar” não significa falar mal de alguém. Do latim sulto, insultare, a palavra tem a mesma origem de “saltar”. Insultar quer dizer “pular em cima”, “saltar sobre”, fixar um nome a um objeto. Injuriar é fazer um julgamento errôneo, e difamar é fazer a pessoa parecer diferente do que é, deslocá-la. Com o tempo, verificou-se que, ao se falar mal de uma pessoa, insultava-se bem. Desse modo, na transformação verificada na língua, “insultar” tornou-se sinônimo de falar mal de alguém.

Isso explica também porque, numa relação sexual, nos segundos anteriores ao orgasmo, insultar não significa falar mal. Nesse momento, certas falas podem dar excelência ao coito. Às vezes, o orgasmo é melhor atingido com palavras coadjuvantes do que em silêncio. A exceção fica por conta de pessoas que falam línguas diferentes. Por não terem o mesmo registro afetivo, certas palavras indicadoras de carinho ou de sensualidade, numa língua, podem tornar-se extremamente ridículas em outra. “Insultar” seria então saltar sobre, pôr um nome sobre uma pessoa, etiquetá-la.

A frase “Você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo” foi fundamental. E por quê? Porque, às vezes, até mesmo uma bela história pode se tornar um insulto e fixar o sujeito a um ponto. O insulto é o oposto da liberdade, mesmo que seja um “bom insulto”. Nessa perspectiva, quando um elogio fixa o objeto elogiado num determinado ponto, mata o objeto, tanto quanto o insulto. Mesmo quando o elogio está dirigido a uma pessoa viva, a quem procura dignificar, ele pode mortificar, deixando-a constrangida.

Por isso podemos concluir que o maior dos elogios é o elogio fúnebre, o momento em que se fixa um nome a um corpo: “aqui jaz”. Não tenhamos dúvidas — o elogio fúnebre fala daquilo lá.

Os políticos costumam empregar o elogio como maneira de calar a boca do adversário:
— Você, que é muito inteligente, que tem grande experiência na administração e que já passou pelas agruras de um administrador público, sabe que tenho razão.

Se o outro negar, estará admitindo que é mau administrador, sem experiência. É o jogo da oratória política vulgar, banal, utilizado com muita freqüência.

O fato de o analista ter interrompido a sessão de José e feito aquela interpretação funcionou como alerta para que ele desconfiasse das boas descobertas a respeito de si. Tais descobertas também podem ser insultantes.

Nenhuma boa história é capaz de dignificar a coisa sexual. É uma fórmula semelhante à defendida por Lacan no Seminário 17, “A Ética da Psicanálise”, quando ele diz que a psicanálise eleva o objeto à dignidade da coisa. Toda explicação da coisa é indigna porque deixa algo de fora. A psicanálise convida a que se sustente dignamente a sexualidade, na trajetória da vida. E não de maneira indigna, difamada ou deslocada, como as que Freud examinou nos textos sobre “Psicologia do Amor” (1910): homens e mulheres se destratam na intolerância do “encontro”.

Digo que há um encontro quando se pode suportar a surpresa. Neuróticos, perversos e psicóticos não se surpreendem, perderam a capacidade da surpresa. Quando o analista de José fez aquela interpretação, indicou que, se existe um saber que se adquire na análise, existe também algo que tem de ser deixado de fora desse saber.

A partir desse caso, propus um matema: no primeiro período, José sabia que viera da América Latina, de uma família com dois irmãos. Sabia de sua história, tinha um saber positivo, mas um saber que não o tocava, que era uma verdade negativa.

Localizo uma mudança no período entre assistir ao filme Forrest Gump até a sessão de análise. Ali, surge um saber positivo e uma verdade positiva. O insulto aparece nesse ponto, o justo saber a respeito de uma pessoa. É falar a verdade, justamente: “Você é isso”.

A interpretação “você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo” põe em dúvida esse saber, põe nele um aspecto negativo, limitando-o, mas mantendo o positivo da verdade. Insisto nesse ponto: a interpretação analítica da segunda clínica de Lacan não aponta o ilimitado do saber, como em Freud. Ao contrário, ela marca uma limitação do saber. Observe-se essa mudança notável na psicanálise, hoje em dia.

Entre 1950 e 1960, o fim de uma análise representava o fim da criatividade do analista, sua impossibilidade de sacar da cartola mágica novas significações sobre o analisando. Havia analistas que capitulavam frente ao fato e sugeriam que o analisando procurasse outro analista, mais criativo.

Esperava-se sempre que o inconsciente salvasse o sujeito de suas besteiras. O culpado era sempre ele: “Só se foi inconscientemente…”. Era o 007 que, com sua carteirinha, podia fazer qualquer coisa, por se tratar de um agente especial. Os analisandos eram todos agentes especiais do inconsciente. Dizer que se estava em análise era uma maneira de explicar os próprios tresloucamentos. Isso fazia com que maridos e mulheres insistissem para que seus respectivos parceiros entrassem em análise, e, em seguida, para que saíssem…

Jacques-Alain Miller chamou essa nova interpretação analítica, que põe limite à significação, de “Interpretação pelo avesso”. O analista coloca um basta ao sentido. Na interpretação “você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo” há uma limitação: “Chega! Eu não o acompanho nessa história, nas significações que você está procurando”. Limitar o saber é um modo de manter a verdade desatada, o que faz com que uma análise vá do saber ao verdadeiro. Faz-se uma disjunção entre saber e verdade ao dizer que existe uma verdade incômoda a todo saber.

A clínica lacaniana
Três momentos diferentes da clínica de Lacan foram catalogados num texto de Jacques-Alain Miller, “L’Apparole”, publicado na Revista da Escola da Causa Freudiana (nº 34). A partir desse texto proponho uma leitura.
O primeiro momento seria o da “vontade de reconhecimento”. Lacan valia-se de Hegel. A análise era conduzida por meio da vontade do reconhecimento do desejo, as pessoas sofriam porque queriam ser reconhecidas. A base estava em Hegel: o conflito do homem, a dialética entre o senhor e o escravo baseia-se no reconhecimento.

Lacan aplica essa dialética à psicanálise em seus primeiros textos, mais especificamente em conceitos sobre o Outro. O modelo da luta por prestígio mostra essa proximidade com os conceitos hegelianos, posteriormente abandonados.

No Seminário XI, “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Lacan distancia-se de Hegel: “Eu penso contra Hegel, de forma diferente dele”. André Green, ali presente, e que hoje se apresenta como “pós-lacaniano”, saiu-se com esta interpretação selvagem:
— É o filho matando o pai.

O segundo momento seria o da “vontade de dizer”, baseado na psicanálise como prática do diálogo. É ainda na primeira clínica de Lacan, sustentada no “inconsciente estruturado como uma linguagem”, que surge a questão de o sujeito acoplar-se “corretamente” à palavra. É o sujeito dividido entre dois significantes.

No terceiro momento — segunda clínica de Lacan –, não se trata mais nem da vontade de reconhecimento nem da vontade de dizer. Há um novo ponto de ancoragem da clínica psicanalítica, apontando por Lacan em 1972-73, no Seminário 20: a “vontade de gozar”.

São três momentos apresentados de maneiras simples, mas nem por isso menos precisas. Momentos de impasses. De ultrapassagens de Lacan: ser reconhecido, querer dizer, querer gozar. A cada um desses momentos podemos associar, respectivamente, um Outro completo, barrado e inexistente:

– o Outro do reconhecimento (A);

– o Outro barrado (A/), mas atingível;

– o Outro que não existe (AX).

Ao mostrar as transformações sofridas pela clínica, esse esquema recupera a tripartição da estrutura proposta por Lacan: imaginário, simbólico e real. Digamos que hoje a clínica psicanalítica esteja indo em direção ao real, ao passo que no primeiro e no segundo momentos a questão incidia no reconhecimento e na consistência do Outro.
Com o fenômeno da globalização, o mundo pouco se incomoda com o Outro. Se na primeira clínica tínhamos um sujeito dirigido ao Outro (“Quem não se comunica, se trumbica”), na segunda clínica esse Outro foi para o espaço. O mundo globalizado não reconhece um Outro que garanta — os ideais se romperam, não existe mais nenhum termômetro que garanta o dizer.

Num mundo onde o Outro não existe, qual resposta pode encontrar um sujeito que tropeça com o real? Se no primeiro momento é “reconheça-me dentro de uma identidade” e no segundo “reconheça-me dentro de uma alteridade”, no terceiro seria “reconheça-me dentro de mim mesmo”?

Mas o que seria o ser do “mim mesmo”? A única resposta: este ser goza. E não se tem nenhum controle sobre esse gozo. As doenças da modernidade são doenças que chamei do curto-circuito do gozo, daqueles que vão direto ao prazer, sem intermediários. Elas são conseqüências do curto-circuito da palavra: curto-circuitam a palavra.

Não é de estranhar, no mundo globalizado, o crescimento de doenças ao mesmo tempo individuais e sociais, como a anorexia, a toxicomania, os crimes hediondos, os atos delinqüentes, as doenças psicossomáticas. São todos exemplos do curto-circuito do gozo. Os clínicos ouvem com respeito esses nomes porque conhecem as dificuldades desses casos, sabem que quando surgem, seja no consultório, no ambulatório ou no hospital, dão trabalho. Como ter acesso às doenças do curto-circuito do gozo? É aí que toda tecnologia está se debatendo.

Em geral, essas doenças são formas de apreensão da verdade. Elas tratam uma verdade, mas não através do saber. Antes, tratava-se a verdade pelo saber, era um mecanismo de abordagem pelo recalque.

Freud construiu a psicanálise como teoria e técnica de tratamento dos efeitos do recalque. Para ele, todo ser humano teria tido um dia, na vida, uma experiência de satisfação, muitas vezes representada pelo aleitamento, pela presença de alguém, de um corpo, de uma situação que o completava. Ao longo da vida, o sujeito perde essa sensação de bem-estar, quando surgem situações que diferem da primeira e chega uma outra pessoa que não aquela. Ao deparar com o Outro, ele percebe que não é um, que não é inteiro. Por isso já se disse que o neurótico não gosta de surpresas. Diante do inesperado, ele se aferra ao mesmo:
— Você mudou de perfume?

As crianças, por exemplo, detestam que lhes contem outras histórias. Se alguém narra-lhes o conto de Cinderela, no dia seguinte vão querer ouvi-lo novamente, com os mesmos detalhes. A primeira narração é uma forma de insultar, de fixar o ser. Ocorreu, naquele momento, um recalque da experiência de satisfação, algo que se perdeu, se recalcou.
A partir do recalque construiu-se a psicopatologia que dele se depreende: neurose, psicose e perversão. Na neurose, acredita-se que se vai recuperar algo que se perdeu. Por isso o neurótico pensa que amanhã será melhor, sempre adiando decisões. É, por excelência, o indeciso. Uma vez que decidir implica uma perda, não suporta decidir, procurando alguém que o faça por ele.

Na perversão, não é necessário o recalque porque o sujeito mantém uma satisfação contínua. Na psicose, há um “defeito do recalque”. A essa psicopatologia chamamos a primeira clínica de Lacan, a clínica estrutural, e que funciona bastante bem.

Vejamos o recalque como ficção. Não é a mesma coisa ter a “Outra cena” como ficção ou tomar um tranqüilizante. Enquanto o tranqüilizante serve para todos e tem garantia científica, a outra cena funciona individualmente, é cena para um e é garantida apenas na palavra do sujeito. Importa essa diferença: o tranqüilizante é um insulto que se generalizou, fixou, avalizou e deu garantia.

Da mesma maneira que chamar alguém de “filho da mãe”, o tranqüilizante marca um atributo no sujeito: “Você é um deprimido”. O tranqüilizante também nomeia, prescreve. Prescrever significa escrever previamente, “fixar”, “limitar”, “marcar”. Assim como “insultar”, significa saltar em cima. Então, nós, médicos, baseados na terminologia latina, ao prescrever, poderíamos compreender: “Insulto tal coisa a tal pessoa”.

No texto Inibição, sintoma e angústia, de 1925, ao rever o caso Hans, Freud descobre que a fobia de seu paciente não é explicável pelo recalque. E, curiosamente, ele recupera algo muito antigo, a teoria da defesa, em que a pulsão não é tratada pelo saber. É a teoria da pulsão não-recalcada, de algo que escapa do domínio, do poder do recalque.

Interessa a Lacan retomar essa vertente em Freud para responder ao que hoje chamamos clínica dos inclassificáveis, do mal-estar que não é classificável na psicopatologia clássica estruturalista da psicanálise (neurose, psicose e perversão). Como responder a fenômenos como a psicossomática, as drogas, a delinqüência fortuita, o fracasso escolar?

Os alunos de hoje não são rebeldes como os de ontem. Rebeldes foram aqueles que fizeram passeata em 1968, que foram à Maria Antonia* , que protestaram e que, hoje, orgulham-se do passado. Esses sim, “ fomos” rebeldes.
Se os alunos de hoje entregam a prova em branco, os de ontem entregavam um tratado. Hoje entregam a prova em branco e dizem:
— Não sei.

Não há a menor vontade nesse gesto. Há desinteresse. O gozo não passa por aí. Os esportes de ação ganham cada vez mais importância: o alpinismo, a descida em corredeiras, o jogar-se da ponte da Avenida Dr. Arnaldo, na capital de São Paulo, aos domingos. Todos acompanharam o principezinho, o filho de Charles e Diana, ser descoberto pelo pai descendo a parede de uma usina, o que não fica bem a um principezinho.

Para discutir essa questão da segunda clínica e do risco do insulto, eu trouxe o exemplo de alguém rigorosamente insultado na vida, uma vez que esteve num campo de concentração. Na história humana, não há insulto, difamação maior que Holocausto. A espécie humana jamais foi tão insultada. Jovens que sobreviveram a tal experiência perguntaram-se inúmeras vezes se testemunhariam ou não tal vivência.

Destaco o exemplo de Primo Levi, italiano de Turim nascido em 1919, químico brilhante, preso em 1943 e que, por ser químico, trabalhou num campo de concentração na Itália. Em 1944 ele foi para Auschwitz e, em 1947, escreveu um livro chamado Isto é um Homem?, recusado por seu editor e que só foi publicado em 1957. A obra transformou-se em um dos clássicos da literatura mundial pela qualidade da escrita, pela verdade de sua posição e pela não-dramatização do texto. É o relato do dia-a-dia de uma pessoa progressivamente insultada. No entanto, em 1987, todos sabem, Primo Levi suicidou-se. Por quê?

Se nos basearmos em outro autor que passou por um campo de concentração, Jorge Semprun, de origem espanhola, diremos com ele, em seu livro A escrita ou a vida (Companhia das Letras, 1944), que Primo Levi suicidou-se porque não tinha mais o que fazer. O restante da dignidade humana — se é que resta alguma dignidade depois de um campo de concentração — recusa-se de maneira absoluta a uma sociedade capaz de fazer o que fez a seus cidadãos. Jorge Semprun afirma que, se escrevesse o que viveu em Buchenwald, “Bosque de Faias”, nome maldito, não poderia mais viver: “Se eu disser o que aconteceu, perco a vida”. Levou quarenta anos para conseguir escrever o livro A escrita ou a vida. Lançou outro: Adieu, vive clarté…[Adeus, viva clareza…], pela Gallimard.

Como continuar a viver quando se teve a infelicidade de sofrer o pior insulto do mundo sem poder respondê-lo, e sem ao menos poder desvalorizar sua gravidade? É um problema enorme para quem esteve num campo de concentração. Como continuar freqüentando festas, por exemplo, e suportar ser cobrado pelos outros? Torna-se um problema perder um parente e ter uma festa dali a um mês. A tristeza e o recolhimento lhe são cobrados. Como pode ainda existir vida depois de ter vivido tudo isso? Para Primo Levi não houve essa possibilidade; para Semprun, sim.
Ele se deu conta finalmente de que todos os personagens de sua vasta obra literária nada mais eram do que cadáveres inventados, um engodo que ele agitava tal como o pano do toureiro frente ao touro mortal:

É dessa maneira que eu me esquivava, que eu a distraía. O tempo que a morte perdia — tão brava e estúpida quanto um touro de combate — em adivinhar que mais uma vez só tinha conquistado um simulacro, era para mim uma vitória, eu ganhava tempo.

Os personagens de seus romances funcionavam como se, no momento em que o balão tivesse perdendo altitude, ele jogasse um saquinho de areia — o balão tornava a subir. Quando a morte se aproximava, jogava outro saquinho, alimentava-a por meio das figuras de seus romances. Finalmente, descobriu que “A morte enfiava os seus dentes sobre cadáveres de sonho”. Um grande escritor. Cadáveres de sonhos são fantasias que as pessoas oferecem à morte.
Em Adieu, vive clarté…, Semprun explica:

Eu não gostava da idéia de ser confinado no papel de sobrevivente, de testemunha digna de fé, de estima e de compaixão. A angústia me tomava pelo fato de ter que representar esse papel com a dignidade, a medida e a compostura de um sobrevivente apresentável: humanamente e politicamente correto.
Eu não queria ser obrigado a viver para sempre nessa memória, dessa memória.

É alguém que diz: “basta de acreditar muito nisso tudo”:

Eu me irritava com os obstáculos que minha memória impunha à minha imaginação romanesca. Uma vida muito aventurosa, muito carregada de sentido por vezes barrou os caminhos da invenção, levou-me a mim, enquanto eu pretendia inventar o outro, me aventurar no território imenso de estar além, de ser-outro.

De certa maneira, eu não poderia ser escritor. (…) Este livro é o relato da descoberta da adolescência e do exílio, dos mistérios de Paris, do mundo, da feminilidade. (…) A experiência de Buchenwald não está presente aqui, nem lança nenhuma sombra. Também nenhuma luz. Está aí por que escrevendo Adieu, vive clarté…, pareceu-me reencontrar uma liberdade perdida.

Semprun conta como se sentia aos quinze anos de idade, antes de ser pego na armadilha da Gestapo, antes de ter vivido naquele block 56:

Eu era então esse menino de quinze anos que descobria o borbulhante infortúnio da vida, suas alegrias também, inacreditáveis, em Paris, entre as duas guerras de sua adolescência.

Aí estou eu de novo.

É como encerro: “Aí estou eu de novo”.

_______________

* Rua da cidade de São Paulo onde ficava a USP (antes da mudança para o câmpus do Butantã) e onde até hoje está localizada a Universidade Mackenzie. No final da década de 1960, essa rua foi palco de lutas políticas, passeatas e conflitos com a polícia. (N. da E.)