/Ridículas Palavras Recalcadas

Jorge Forbes

I

Aquela pena, caindo entre as árvores sobre o rapaz sentado no banco da praça, com cara meio abobalhada, lhe pareceu um lugar comum, um apelo fácil ao sentimento da platéia, onde ele estava. José se arrumou em sua poltrona e se preparou para não gostar do filme. Mas, pouco a pouco, o desinteresse foi se modificando, pois José começou a se reconhecer no personagem, tratado como um tonto por sua família, por seus colegas de colégio e que, no entanto.
Desajeitadamente, ia obtendo sucesso na vida, sempre de maneira atravessada. O personagem ganhava corridas porque se punha a correr, era modelo para cantor de rock por sua disritmia, depois herói de guerra por inconseqüência e assim por diante.
O filme que lhe pareceu de início chato e sem interesse foi tomando corpo.

Freud dizia que um sonho parece ao sonhador, em um primeiro momento, dessa forma: chato e desinteressante, e que é só na medida das associações que o afeto e o interesse surgem. Pois assim se deu: terminada a sessão – de cinema – José estava lívido, aquela era a sua história. Que imenso esforço, pensou ele, lhe tinha sido até então imposto para ultrapassar suas deficiências, anunciadas como tais pelos outros.
Na sua casa familiar, em seu pequeno país natal, da América do Sul, o bom sempre estava em outro lugar: no Brasil, em São Paulo, mais precisamente na Universidade de São Paulo. Não havia encontro de família, almoço ou jantar, quando alguém se queixava do confronto a uma situação difícil, que não lhe dissessem: – “Ah, para resolver isso, só fazendo um curso na USP”. E aquela USP era tão distante para José… Se ele era aquele ponto tolo, como pretender ir à USP e, não indo, como iria suportar as dificuldades? Não tinha jeito. A USP era coisa para um ou outro de seus dois brilhantes irmãos; a ele sobrava talvez a sorte. E no entanto, paradoxo do destino, José estava na universidade e com sucesso.

Na saída do cinema ele tentou disfarçar suas lágrimas: de raiva pelo esforço sofrido em nome de um ideal e de pena, por autocomiseração.
A hora tardia, do final da sessão, meia-noite, não o impediu de querer revisitar cada instituto, cada sala freqüentada naqueles últimos anos. Ele já fazia planos para no dia seguinte contar a seu analista sua grande descoberta: as razões de seu sofrimento. Queria ir às últimas conseqüências, sentir tudo o que devia sentir, deixar-se invadir pelas memórias afetivas daqueles lugares, às vezes calvários de castigo, às vezes de redenção, sempre religiosos.
Foi difícil entrar no setor de Filosofia tão tarde da noite mas a porta aberta, amavelmente oferecida por um professor notívago, que se retirava, facilitou a empresa. De cada carteira, de cada corredor emanavam as angústias de estar aquém do ideal. Tinha chegado à USP, mas será que a USP era lá?
E do setor de Filosofia, foi ao de Antropologia, em seqüência ao de Sociologia, ao de História… A cada passo mais clara lhe aparecia sua vida, seu percurso, como se diz. De uma certa maneira não era um saber tão movo com o qual se deparava mas nova era a forte convicção da verdade desses fatos. Freud não dizia que o obsessivo recalca o afeto mas não as idéias, diferente da histérica que recalca os dois?

Enfim, fatigado, extenuado, mas feliz pela boa descoberta, foi dormir. Na manhã seguinte, cedo, verificou se não havia se esquecido de nada do ocorrido na madrugada e que iria relatar a seu analista… Quanta expectativa! Chegada a hora, entrou e imediatamente contou sua noite em todos os detalhes. Ao fazê-lo, começou a notar que não era escutado com o interesse que aguardava. – “Será que não estou sendo claro?”, se perguntou, e buscou reforçar a importância do que dizia. O analista, assim terminado o relato, sem nada falar, levanta-se, pondo fim à sessão e lhe dando um novo horário para dali a algumas horas. Reencontrando-se no elevador, entre a sideração, a raiva e a frustração, José se perguntou o que era aquilo.
Horas depois, retomando a sua sessão, precavido, não querendo ser de novo surpreendido, de maneira bem objetiva, começou por perguntar se a sessão anterior tinha sido encerrada porque o analista pensava que assim devia fazer ou porque a sala de espera estava cheia. O analista, laconicamente, responde-lhe: “Porque entendi que deveria interromper”. José tenta então lhe explicar o absurdo sofrido, voltando sobre sua história, agora não mais emocionado mas à maneira de um advogado que exige justiça à dor de seu cliente. E, assim, em poucos minutos, energicamente, retomou e pôs em ordem os pontos capitais de sua reflexão noturna. Recebeu então uma nova resposta de seu analista, uma interpretação: – “Pois é, você arriscava acreditar excessivamente nisto tudo”. A sessão terminou aí e, com ela, uma história.

II

Gostaria de comentar esta passagem de uma análise, em duas vertentes: a do analisando e a do analista, lembrando que o imbricamento sendo tanto, o que será dito para um tem conseqüência para o outro e vice-versa.
Começo então pelo analisando.

Destacaria três momentos distintos na passagem relatada que sintetizaria nessas proposições:

  • a) Havia um saber, não havia uma verdade
  • b) Havia um saber, havia uma verdade
  • c) Não havia um saber, havia uma verdade.

O primeiro momento, “Havia um saber, não havia uma verdade”, corresponde ao fato de que José conhecia suas coordenadas familiares, sabia mas não dava a estas peso de verdade, de importância. E, como já referido, dissociava no recalque obsessivo a ‘idéia’ do ‘afeto’, o que possibilita uma espécie de convivência irresponsável com o sintoma.
O segundo momento, “Havia um saber, havia uma verdade”, corresponde ao da suspensão do recalque secundário: ele, José, se via alienado completamente a uma história. Nota-se um misto de responsabilidade e culpa, onde ele reconhece sua participação, mas culpa o outro por seus tormentos.

Finalmente, no terceiro momento, “Não havia um saber, havia uma verdade”, José fica com uma verdade incompleta, diríamos quanto a sua compreensão, provocada pelo analista: – “Você arriscava acreditar excessivamente nisto tudo”, o que o forçou a ir além do recalque secundário, obrigando-o a fabricar um outro tipo de saber para responder à verdade que lhe tocava.
Podemos ver aí um exemplo do que em 1977 Lacan1 estabelecia como alvo de uma análise: um significante novo. “O que eu sempre enuncio é que a invenção de um significante é alguma coisa diferente da memória (…) Nossos significantes são sempre recebidos. Por que não inventar um significante novo? Um significante, por exemplo,, que não teria, como o real, nenhuma espécie de sentido?”
No caso de José, este vai de sua memória morta a uma memória vivida e, em seguida, a um buraco na memória, o que lhe permite o futuro: o aparecimento de um novo significante.

Em 1908, Freud publica dois textos que têm seu interesse de serem lidos em correspondência: “Romances Familiares” 2 e “Escritores Criativos e Devaneios”3. Freud aí se pergunta por que existem histórias que nos aborrecem enquanto outras, ao contrário, prendem nossa atenção. Seria devido às diferenças dos temas tratados? Haveria alguns mais interessantes que os outros? É o que o bom senso levaria apensar. Mas, ainda uma vez, o bom senso pensa mal, pois Freud descobre, quanto ao tema, que neuróticos e escritores se referem ao mesmo, ou seja, ao que lhes falta, ao que desejam, com a diferença que a maneira de desenvolver uma resposta não é a mesma para cada um deles.

A base do romance familiar do neurótico é, frente à decepção sofrida com a sua família de origem, constituir uma outra mais valiosa, mais adequada aos padrões ideais. No caso de José, ir para a USP.
O escritor criativo, por seu lado, não tem tanta certeza de um ideal. Ele se inventa um lugar e assume a responsabilidade por sua escolha. A particularidade de suas opções permite aos leitores fazerem o mesmo.
Freud destaca a culpa e a vergonha como os fatores que se alteram do neurótico para o escritor criativo: “… a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma liberação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha”.4
Difícil dizer que, à semelhança de um escritor, o analista leve o analisando a se deleitar com seus devaneios, tal como Freud acaba de enunciar. Entretanto eles se aproximam no ponto em que uma análise também modifica as auto-acusações, a culpa e a vergonha. No lugar da culpa sempre referida a um outro, uma análise conduz à responsabilidade sobre seu próprio gozo.
“Coma seu daseiri5, fórmula em que Lacan se expressou a respeito da tarefa do analisando, quereria dizer que nenhuma culpa, arrependimento, castigo ou promessa poderia liberá-lo desta dura obrigação, a de roer o osso de sua existência.
A intervenção do analista, no caso de José, o impulsionou a sair de seu repetitivo romance familiar, desacreditando suas queixas – “Eles me viam como alguém distraído e pouco inteligente” – e também sua solução – “Tinha que ir para a USP”. Não há uma história que explique uma vida, pois a vida excede todas as histórias.

III

Passemos agora ao comentário, vertente do analista. Chocou José ao final da primeira sessão relatada, a pouca, até mesmo nenhuma solidariedade demonstrada pelo analista, face a seu drama. É fato, o analista não é cúmplice da paixão exposta mas, pela sua posição, revela a qualidade, a função de prótese, de obturação, da história contada.
É como se ele ridicularizasse, na acepção de realçar o absurdo, a explicação de um sofrimento. Ele questiona a relação de compromisso estabelecida pelo sintoma neurótico. Para ele, neste sentido, também é válida a descrição que Denis Diderot faz do ator, em seu famoso paradoxo: “É o olho do sábio que capta o ridículo de tantas personagens diversas, que o pinta, e que o faz rir, quer desses importunos originais de que fostes vítima, quer de vós mesmo. É ele quem vos observava e quem traçava a cópia cômica, quer do importuno, quer de vosso suplício”. E ainda: “Mais impressionados (os atores) por nosso ridículo do que tocados por nossos males, de um espírito bastante sereno ante o espetáculo de um acontecimento lastimável, ou ante o relato de uma aventura patética; isolados, vagabundos, à mercê dos grandes; poucos modos, nenhum amigo, quase sem qualquer dessas santas e doces ligações que nos associam às penas e aos prazeres de outrem que partilha dos nossos”6.
Realçando o ridículo que existe no envelope choroso de um sofrimento, o analista colabora para que o analisando não se tome por demais a sério. Dissocia dor e relato da dor, provando que freqüentemente sofre-se mais pelo que se conta do que pelo que se sente. Como já sublinhado, a vida excede as dimensões de todas as histórias, sendo o que explica, a meu ver, que as biografias só possam contar a história dos que já morreram. Há sempre um excesso, um ridículo a suportar na vida; o ridículo é o particular que não se encaixa em nenhum universal. São ridículos, por exemplo, os termos de ternura quando ditos em público, os apelidos cúmplices, os carinhos. Aquilo que só serve a um, a dois ou a um pequeno grupo é habitualmente tachado de ridículo.

Evitando o excesso da vida, o sintoma neurótico se oferece como uma roupagem sóbria, ao ridículo, ao singular de um desejo. É o que podemos notar a propósito do que chamamos o recalque secundário; no caso de José, sua infortunada história.

Uma análise deveria levar uma pessoa que a realiza a melhor contar o ridículo de sua vida, tal como o sugere Fernando Pessoa em um poema escrito por seu heterônimo Álvaro de Campos e intitulado: “Todas as Cartas de Amor”7 . Ele diz assim:

Todas as cartas de amor são

  • Ridículas
  • Não seriam cartas de amor se não fossem
  • Ridículas.

 

  • Também escrevi em meu tempo cartas de amor
  • Como as outras,
  • Ridículas.

 

  • As cartas de amor, se há amor,
  • Têm de ser
  • Ridículas.

 

  • Mas, afinal,
  • Só as criaturas que nunca escreveram
  • Cartas de amor
  • É que são
  • Ridículas.

 

  • Quem me dera no tempo em que escrevia
  • Sem dar por isso
  • Cartas de amor
  • Ridículas

 

  • A verdade é que hoje
  • As minhas memórias
  • Dessas cartas de amor
  • É que são
  • Ridículas.

No começo, ao se deparar com o amor, com o que se diz do amor, as cartas de amor são consideradas pelo poeta como ridículas. Depois, progressivamente, ele se dá conta que são aqueles incapazes de escrevê-las, os que são ridículos. Aí estaria uma metáfora ilustrativa do que quis dizer para uma análise: conseguir, com as palavras para sempre recalcadas, ridículas, escrevê-las em cartas de amor.