/Um caso de amor ou de polícia?

Por que Natascha Kampusch interessa tanto a um mundo cativo de cotidianos mal ajambrados?

Caderno ALIÁS – Domingo – 10 de setembro de 2006

Jorge Forbes*

Não acredito que Natascha, a jovem recém-libertada de um seqüestro de oito anos, tenha obtido a primeira página de toda imprensa mundial pelo crime sofrido. Disso temos muitos outros exemplos mais espetaculares e mais próximos. Natascha interessa ao mundo como um estranho caso de amor.

Por que ela não fugiu? É o que todos se perguntam. Sim, “se” perguntam, pois é fácil colocar-se na posição dela, identificar-se com ela.

– Eu teria fugido, imagina!, dezoito anos, aquele tamanhão todo, freqüentando lojas e sorveterias, sendo apresentada a amigos, qual é a dela de não fugir?

Quem diz isso heroicamente saberia escapar de um seqüestro escabroso, mas talvez não tivesse a mesma coragem frente aos cativeiros disfarçados em cotidianos mal ajambrados: do companheiro ou da companheira insuportável, do emprego chatíssimo e injusto, da reunião infernal, e por aí vai. Natascha estampa que não é a troco de nada que amantes se dizem cativados e que jovens querendo saber se foram compreendidos perguntam: “Tá ligado?”.

A polícia já tem a resposta pronta na ponta da língua: “Síndrome de Estocolmo”. Catalogar, nesse caso, é uma maneira de recuperar rapidamente certezas abaladas pelo desconforto desta história, pasteurizando sua virulência. Como gostaríamos que os amores fossem normais, que não tivéssemos de nos confrontar com suas esquisitices. Como gostaríamos de amar “como todo mundo”! Vai nesse desejo um pouco da razão do sucesso dos parques temáticos gênero Disneylândia, onde todo mundo ri igual. Pois bem, foi essa a base da descoberta de Freud que originou a Psicanálise: os humanos não têm prazer no bom senso e não existe a norma da relação entre os sexos, completou, em seguida, Lacan.

Natascha conta em sua primeira entrevista que ao ver aquele homem encostado no carro, na calçada que a levava ao colégio, passou-lhe um frio na barriga, uma vontade de atravessar a rua pela lembrança dos avisos maternos, no entanto prosseguiu e foi apanhada.

O homem, que no começo dizia à menina que se tratava de um seqüestro com a intenção de ganhar dinheiro, progressivamente foi revelando que não era nada disso: literalmente ele pegou uma menina para criar, como se diz na gíria.

Os homens fantasiam educar as mulheres; eles não entendem que uma mulher possa ter sucesso pensando e agindo de uma maneira tão diferente deles. Isto ficou celebrado no musical Minha Querida Dama (My Fair Lady), baseado no Pigmaleão, de George Bernard Shaw, com remontagem anunciada em São Paulo. O personagem principal, Henry Higgins, criado originalmente por Rex Harrison, e entre nós por Paulo Autran, a um certo momento, indignado com a ineducável Eliza, se pergunta: “Por que uma mulher não pode ser mais parecida com um homem?”.

Pelo outro lado, não é raro, continuando na mesma peça como exemplo, que mulheres à semelhança de Eliza exijam de um homem que lhes declare amor, com bem mais que “palavras, palavras, palavras”.

É notável a afirmação de Natascha explicando que não se libertou antes porque ficaria mal para a reputação de seu carcereiro; como também é notável que insista em chamar sua prisão de calabouço (verlies, no original), calabouço de um castelo. Castelo, ela tinha se referido um pouco antes na entrevista, dizendo que sua mãe lhe via com pendores artísticos desde pequena e que quando crescesse iria para o “Teatro do Castelo”.

Quem mandava em quem? Quem aprisionava quem? O seqüestrador, dono dos movimentos de Natascha, ou Natascha, dona da reputação de seu seqüestrador?

Natascha conta que via naquele homem alguém que se arriscava por ela. Ela sabia disso e chegou mesmo a prever e avisar que aquele relacionamento estava perto do fim. Mas ela não queria que ele se matasse. Há quase uma certeza que ele tenha se matado por desespero e não por medo de ser preso. Natascha chega a se declarar cúmplice de assassinato, junto com o motorista que o levou à estação de trem e o condutor do próprio trem, sob o qual ele, seu seqüestrador, terminou. Ela também lamenta que agora só exista ela para contar a sua história, já avisando que não aceitará que ninguém conte por ela, ela o fará chegada a hora, e cobrará por isso.

Realmente, Natascha tem uma história para contar em um mundo tão ávido de histórias, em especial escabrosas. Na lista dos livros mais vendidos vemos despontarem desde biografias de jovens prostitutas a de pequenos ou grandes assassinos – baseado no número de vítimas -, de Suzane (algum editor já deve estar preparando uma) a Hitler. Isto pode indicar que nossos tempos desbussolados querem compreender o excesso, o inusitado, o surpreendente.

Para compreender esses tempos em que não nos vemos mais a salvo em nossa boa imagem, nem nos princípios da família e nem na moral social e política, necessitaremos bem mais do que a compreensão para saber porque Natascha não é Eliza e nem Priklopil – é esse o nome do homem – é Henry Higgins.

A diferença existe, ela é grande, mas não se provará com as nossas envelhecidas categorias. Estamos em um novo tempo de mudança paradigmática do laço social, do surgimento de uma nova forma de responsabilidade frente ao acaso e à surpresa. Nastascha e seu guardião se mostraram irresponsáveis: eles sabiam o que lhes ocorria, Natascha o diz em todas as letras. Nesse nosso tempo, há que se ser responsável pelo que se sabe, mesmo que seja pouco, pois não tem nada além. Todo saber é incompleto e caberá a cada um se responsabilizar por completá-lo com a sua subjetividade.

Não há mais vida que se proteja na moral estabelecida, pois moral estabelecida não há mais, parodiando Drummond. É uma oportunidade a um renascimento cultural do homem, que assim poderá viver e contar melhores histórias.

*Jorge Forbes é psicanalista e psiquiatra. Preside o Instituto da Psicanálise Lacaniana. É autor, entre outros, de Você Quer o Que Deseja? (Editora Best Seller)