/A Psicose e os Semblantes do Analista

Trabalho apresentado pelo IPLA em 4 de abril de 2009, por ocasião do VIII Congresso da EBP O analista e os semblantes, em Florianópolis.

Ariel Bogchvol

P, 26 anos, natural de SP, solteira, foi encaminhada para o ambulatório do IPq-HC-FMUSP em função de um TOC grave e da refratariedade à terapêutica. Após curta tentativa de tratamento ambulatorial, decidiu-se por sua internação em vista do risco de suicídio. Foi entrevistada no NEPPSI (1) duas vezes. A primeira, 39 dias pós-internação, resultou em mudança do diagnóstico e da terapêutica (2). A segunda, realizada um mês depois em uma apresentação de pacientes, é objeto deste trabalho que enfoca as manobras do analista, os usos que faz dos semblantes e seus efeitos sobre a paciente.

JF – Como vai?
P – um pouco melhor

JF – melhor do que?
P – do toc

JF – o que é toc?
P – transtorno obsessivo-compulsivo

JF – o que é isso?
P – sinto nojo de todos. Se o senhor pegar na minha mão, vou ficar doente?

JF – talvez
P – então como é que a gente faz?

JF – não sei, cada um tem um jeito de evitar isso. Qual é o seu?
O diálogo é rápido, ágil. Toc é o diagnóstico que ela se deu ao assistir um programa de TV, o diagnóstico do psiquiatra que a tratou no ASM, o termo que a identificava há algum tempo. Para seu espanto, o entrevistador, doutor de terno e gravata, não conhecia toc e não oferecia qualquer palavra tranqüilizadora quanto aos riscos de contágio. Apresentava-se como um sujeito suposto não saber. Era ela que sabia; ele, douto ignorante, queria saber. Incitava-a a falar de toc, do seu toc, emprestava consequências ao que dizia e a implicava em seu sintoma. P. se angustia.
P – eu lavo a mão

JF – se você lava a mão a cada vez que dá a mão então sempre vai ter que lavar a mão
P – não dou a mão

JF – não dá a mão pra ninguém? Não faço assim, me arrisco mais.
P – e se tem micróbios?

JF – não sei, isso é coisa de microscópio. E tem micróbio em todo lugar. Gosto de dar a mão, você não.
P – não consigo.

JF – não consigo não dar a mão.Já abraçou alguém?
P – não. Só meu pai e minha mãe.

JF – mais seu pai ou sua mãe?
P – minha mãe… Meu pai era violento. Uma vez deu uma vassourada em minha cabeça porque eu não queria comer… Abraço pode dar contaminação. Achava que tava tudo contaminado. Estou melhor com os remédios.

Neste momento, o quê a representa é o medo da contaminação. No corpo a corpo, o analista se aproxima, faz perguntas diretas sobre acontecimentos do corpo, o encontro com outros corpos e fala de si. Apresenta-se ora como $, ora como semelhante a-a’, ora como parceiro. Verifica, assim, a forma do sintoma, sua extensão e eventual mobilidade. Toca na sua novela familiar e sexualidade.

JF – por quê? Remédio tira contaminação?
P – não sei, agora estou me sentindo melhor.

JF – não entendi. O remédio tira a contaminação?
P – é, limpou o hospital.

JF – uma pessoa toma remédio e o hospital fica mais limpo?
P – não sei, achava que tava tudo contaminado.

JF – o remédio está tratando o hospital ou está tratando o que você achava?
P – não sei, antes eu não conseguia ir ao banheiro, tinha que limpar tudo em todo lugar, só pensava em limpeza.

JF – então o que mudou foi o seu pensamento, deixou de pensar nisto. O remédio não limpou o hospital, mudou o seu pensamento.

Ao invés de reconhecer uma mudança subjetiva, P percebe uma mudança objetiva. Tomou remédio e o hospital mudou. O analista pergunta, insiste, e leva o raciocínio de P ao limite. Testa sua capacidade de retificação. Ela permanece em suspenso e apresenta, neste momento, fenômenos de franja. Diante da perplexidade de P, o analista afirma: então foi seu pensamento sobre a contaminação que mudou. No lugar da indeterminação subjetiva, enuncia uma bejahung.

JF – Há quanto tempo seu pensamento está alterado?
P – desde os 6 anos. Tinha que rezar 10 pais-nossos e 10 ave-marias. Tinha medo de morrer, que meus pais morressem e rezava. Punha os chinelos juntos, ao lado da cama, para não acontecer nada com eles.

JF – chinelo arrumado protege as pessoas de morrerem?
P – protege. Não arrumei quando minhas amigas morreram,quando minha mãe se internou.

JF – a morte estava sempre perto de você.
P – vinha com um machado.

JF – você viu ou sonhou?
P – sonhei. Um homem de capa preta dava uma machadada em mim.

JF – como seu pai.
P – pois é.

JF – isso aconteceu depois da vassourada?
P – não, antes. Minhas amigas morreram com uma machadada. Sonhava que elas vinham me buscar e via o machado. Eu não queria olhar mais.

JF – se você não olhar mais, não abraçar mais, não der a mão mais, vai ficar totalmente isolada.
P – mas eu tenho medo

JF – medo da morte?
P – não, de me contaminar

JF – então, você tem medo da morte. Você passa sua vida tentando se proteger da morte. É uma vida sem festa, infestada.
P- será que o senhor pode falar pra tirarem meu útero?

P expõe algumas máscaras da morte que, sempre próxima, a assombram: o homem do machado, a contaminação, o esquartejamento. O analista assinala a associação entre contaminação e morte e entre o homem das machadadas e o pai das vassouradas. Isto não produz efeitos. Para P, a palavra é coisa, não há metáfora. Leva-a, então, a se defrontar com os resultados de sua luta – isolamento, mortificação – e, em um jogo de palavras, sintetiza sua história: é uma vida infestada, sem festa. P sorri.

JF – Mas por que eles deveriam tirar seu útero?
P – é o culpado de tudo, da minha mãe ficar doente, da depressão

JF – foi do útero que nasceu a depressão?
P – nasceu minha irmã e a depressão

JF – ah! tirando o útero você impede a gravidez, o parto, a depressão?
P – isso

JF – então, se a mão pode contaminar, extirpam-se as mãos, se a comida pode contaminar, corta-se a comida. Onde fica o limite? Corta tudo? Como explicar pro ginecologista que você precisa tirar o útero?
P – fala que eu tenho TOC e que isso vai fazer eu melhorar

JF – difícil ele aceitar. Já teve relação sexual?
P – não, é pecado.

JF – então você é fruto de um pecado. Como você nasceu?
P – minha mãe fez amor com meu pai.

JF – e quando a gente faz amor, faz amor ou faz pecado?
P – pecado

JF – fazer amor é pecado?
P – oh doutor, eu to cansada desse mundo

JF – qual é o seu mundo?
P – meu quarto

O analista testemunha sua descoberta, o modo como chegou a ela e suas consequências: o útero é a causa de seu mal, logo é necessário extraí-lo. É sua hipótese delirante – sustentada a partir de silogismos e inferências paralógicas – e sua proposta de cura. Secretário do alienado, o analista se coloca como porta voz da sua demanda cirúrgica. Pede para P bem dizer seu pedido. Um tanto confusa, fala de suas concepções sobre sexo, amor, pecado, procriação. Na ausência de um significante que organize seu discurso tenta, precariamente, se situar. Há um furo forclusivo, ocupado pelo útero-causa-de-tudo e pelo empenho em retirá-lo.

JF – você quer ter filhos?
P – não

JF – por que?
P – não quero ter depressão pós-parto

JF – nem todo mundo que tem filho tem depressão
P – eu vou ter

JF – como foi a depressão da sua mãe?
P – ela dizia que minha irmãzinha era uma santa e que, por isso, precisava morrer. Dizia que eu também ia virar santa, que também ia morrer. Ficava com medo. Desde esse dia, nunca mais fui normal. Vi minha mãe, que era tudo pra mim, ficar daquele jeito

JF – perdeu uma referência importante
P – tentei matar minha irmã

O analista procura esclarecer as circunstâncias do desencadeamento da psicose, que coincidem com a psicose puerperal da mãe. Psicotizaram à deux, cada uma com seu delírio pós-parto. A mãe pariu uma santa a ser morta em nome de Deus. P perdeu sua referência e tentou matar quem a destruiu. O que não foi simbolizado retorna no real, como passagem ao ato.

JF – e o que aconteceu depois do nascimento de sua irmã?
P – queria matá-la de qualquer jeito… as vozes mandavam… pus remédio na mamadeira

JF – ah, mandavam. Quem?
P – as vozes

JF – e como são as vozes?
P – minha mente fala: vai P, faz isso. Ela diz: corta, eu me corto, jogue álcool, eu jogo

JF – é uma obediência imediata, você não questiona
P – é forte demais. Ou faço ou alguém morre, sofre as conseqüências

JF – o que é isso que tem tanta força?
P – é um negócio que manda fazer as coisas

O analista continua a interrogá-la sobre suas vivências, procura os detalhes, suas reações, sua posição diante daquilo que a afeta. Ao tentar responder, P retorna a um mesmo ponto, além do qual não há palavra ou sentido: ela é objeto de um gozo caprichoso e insensato do Outro. Ele busca delimitá-lo.

P- Dr, esse problema pode ser safadeza?

JF – é um diagnóstico interessante: safadeza. Não é habitual
P – então não preciso me tratar?

JF – tem que saber o que fazer com a safadeza
P – agora me confundiu, o Sr.falou que é safadeza também. Concorda comigo?

JF – eu disse que achava interessante. Não falei que concordava. Não é um diagnóstico habitual, mas é interessante você falar de safadeza
P – minha vó dizia isso

JF – sua vó falou isso, você valorizou, é uma coisa importante. Vou pedir aos drs. que te acompanham para conversarem com você a respeito da safadeza.. O que é uma pessoa safada? A safadeza é um pecado do amor. Falando disso, talvez você possa encontrar outras saídas na sua vida, além do seu quarto.
P- qual é o seu nome?

Acolhendo o diagnóstico de P, o analista a desloca do toc, significante extraído do discurso médico, da cultura, para safadeza, palavra da avó inscrita em sua existência. Safadeza é uma posição singular, ética. Evoca a vida no nordeste, a migração da família, as lembranças de amores mal sucedidos, sua história. Mais do que o sentido, o analista busca as consequências do seu dito e, mais do que revelar o passado, inventar um futuro(3). O que fazer com o impossível comum a todos, a sexualidade? Abria-se a possibilidade de um tratamento analítico.

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1. Núcleo de Pesquisas de Psicopatologia e Psicanálise IPLA/IPq-HC-FMUSP. Os pacientes são entrevistados por Ariel Bogochvol em uma discussão de casos e por Jorge Forbes.em uma apresentação de pacientes
2. BOGOCHVOL A. – O caso P – Uma psicose ordinária e extraordinária – inédito.
3 FORBES J. – Quais são os novos horizontes da política de admissão da Escola? – www.projetoanalise.com.br

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