/O Analista como Ensinante

QUATRO PONTUAÇÕES

Jorge Forbes

1º) O CORPO DO ANALISTA. ‘O Analista como Ensinante’ é o título que o Conselho da Escola Brasileira de Psicanálise pediu-me para desenvolver, em seu Congresso de 2004 (1). Poderia abordá-lo coloquial ou tecnicamente. Coloquialmente o entendimento é imediato – seria o caso de tecer considerações sobre: quando um analista pode ensinar, o tempo de formação, critérios. Tomo, no entanto, a vertente técnica, por me parecer mais interessante e equívoca.

Não é habitual dizermos “o analista como ensinante”. Fomos habituados, por Lacan, ao contrário, a preferir: ‘o analisando como ensinante’. Lacan defendeu esta idéia em seu seminário, lembrando que quem fala se faz sujeito da fala, ficando, por conseguinte, na posição de analisante.

Isto já foi muito explorado, até virar jargão, como ‘ensino a seu próprio risco’, ‘escola de analisandos’, ‘analista avesso do mestre’.

Aceitemos, no entanto, a expressão: o analista como ensinante. Não se trata de um erro em relação a essas considerações tão conhecidas; trata-se de uma mudança na orientação lacaniana, compatível com a passagem da Primeira para a Segunda Clínica, do vazio de significação do Seminário da Ética (2), para o corpo que goza do Seminário Mais, Ainda (Encore) (3).

O analista como ensinante, se é analista, não ensina desde nenhum padrão, nenhuma doutrina, nenhum conceito consagrado. Padrões, medidas universais, são incompatíveis com o exercício da psicanálise. Se assim não fosse, a psicanálise seria uma prática, ela seria uma profissão. A psicanálise, tanto insistiu Lacan no Seminário XI, é uma práxis, não uma prática (4).

E uma práxis – cito Hanna Arendt – é uma “ação, é a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo” (5).

O analista como ensinante, se não fala desde conceitos ou doutrinas, fala desde quê? Desde a sua análise, a resposta já vem pronta, na ponta da língua. Sim, acaciano, mas é pouco. Podemos falar em ensino do analista e não do analisante, a partir dos anos 70, porque a partir daí temos condições, com Lacan, de dizer que o analista ensina desde o seu corpo. Qual ‘o corpo’? Nossa língua portuguesa só recorta o universo semântico corporal com uma palavra. Assim também é em francês: corps. Assim, porém, não é nem em grego, nem em alemão.

Em alemão existem duas palavras para designar o corpo: Körper e Leib. Körper é o corpo-material restrito aos limites da epiderme e tratado pelos médicos, e Leib é o corpo-vida, que, diz Heidegger, está onde o ser estiver: em um espaço muito além da evidência do bom sentido, dos scanners, dos atlas de anatomia (6). Lacan viu-se obrigado à formulação de uma nova topologia para tratar do ‘real’ do corpo; cito-o, em 1976, na abertura de “L’une bévue”: ”…finalmente eu pude entender o que queria dizer consistir e que para isso era necessário falar do corpo (…) eu imaginei então, valer-me, para lhes explicar, de uma topologia fundada sobre o toro…” (7). O psicanalista ensina desde esse corpo e não necessariamente desde o conhecimento. Esse corpo exige criatividade renovada e presença incessante, enquanto o conhecimento se harmoniza no universal, nas prateleiras empoeiradas; descansa.

É assim que posso entender a explicação de Lacan, na introdução do texto “Televisão”, quanto à razão de uma multidão comparecer ao seu seminário, mesmo quando o entendimento não é, ali, prioridade: “…A experiência prova mesmo limitando-se ao tropel, prova que o que eu digo interessa a bem mais gente do que aqueles que com alguma razão suponho analistas…” (8).

O analista como ensinante, não deve nos surpreender caso provoque no público efeitos de sensibilidade variada, semelhantes a alguns aspectos de uma análise – o que faz a retomada, nos dias sucessivos, sobre o divã, do que se escuta em alguns seminários.

2º) O PAÍS DA PSICANÁLISE. Necessário faz-se contextualizar o analista como ensinante. Perguntemo-nos: Jacques Lacan, em 2004, proporia uma escola ipsis litteris àquela proposta por Jacques Lacan, em 1964 (9)? Ficaria ele indiferente ao desenvolvido nestes quarenta anos na psicanálise e nas mudanças fundamentais que sofreu o laço social, a ponto de merecer ser rebatizado: globalização?

Restrinjo-me nesta pontuação a um só aspecto, o mesmo já referido no primeiro item, a saber: a passagem de uma psicanálise sob a soberania do simbólico – que estabelecia um centro vazio – para uma psicanálise de uma topologia borromeana, sob a incidência do real, que não se ancora em um centro vazio, mas na singularidade consistente e multiplicada de corpos gozosos, que fazem multidão e não coletividade. Ainda Lacan, em “L’une bévue”: “…erraram ao traduzir Massempsychologie por Psychologie Collective, apesar de Freud ter partido expressamente dos estudos de Gustave Lebon, chamados “A Psicologia das Multidões” (idem, p. 7).

É o que nos permite dizer que o psicanalista é ensinante. Ele pode ser ensinante quando consegue suportar o seu corpo, -‘corporar’, diria Heidegger (op.cit.) -, na exceção à norma linguageira do coletivo. É o que podemos sintetizar no matema “menos-um”. O analista como ensinante o é, quando entra na série incômoda das exceções dos ‘menos-uns’. Atenção, atenção, nada a ver com a coletividade do ‘mais-um’, por mim assinalada em uma carta pública, na rede internética Veredas-EBP, durante a discussão “Repensar a Escola”, há quatro anos, no dia 26 de outubro de 2000: “De minha parte, não ponho a questão atual em termos de mais-um, porém de ao-menos-um, o que é muito diferente, pois ‘ao-menos-um’ implica na existência de outros”. E continuava: “somente, para aí se inscrever, é preciso começar por abandonar a lógica mortífera da horda, que só celebra o mais-um para estigmatizar o usurpador, impor silêncio ao ‘pequeno número’ e produzir a homogeneidade por nivelamento“.

Por esta razão, da passagem do vazio do simbólico à consistência do corpo, depreendo que faz pouco sentido continuar insistindo que a Escola é ‘o refúgio à civilização’. Ao fazê-lo arriscamos, de refúgio, tornarmo-nos refugo. Escola como refúgio à civilização fazia sentido quando se tratava de preservar o vazio central das garras de uma civilização pai-orientada, com respostas estandardizadas.

O corpo do analista não precisa de proteção à civilização e o analista vai além dos muros da Escola, pois seu espaço é o do Leib, presente na expressão de Jacques-Alain Miller: ‘a psicanálise não tem contra-indicação’ (10). Não tem contra, por ser um espaço topológico de um lado só.

Além dessa mudança concentrada no “analista-cidadão”, devemos esperar outras no passe e na transmissão, objeto destes comentários.

Breve consideração sobre o passe: tivemos um passe dito passe-um. Fala-se, hoje, que estamos realizando o passe-dois. Eu acrescentaria que estamos às vésperas do passe-três. O passe-um era uma experiência semi-secreta, sobre a qual pouco se sabia ou se falava, uma câmara fechada, quase uma mágica.

A ele sucedeu o passe-dois, ao oposto do fechado, o passe exibido ou exibição. Neste, o empenho é de exibir logicamente o percurso analítico e tentar convencer, além do Cartel, a audiência, muitas vezes disposta à semelhança de uma platéia de teatro. Os efeitos do passe-um e do passe-dois são diferentes. O primeiro, de interrogação, e o segundo, de admiração.

Um certo silêncio atual sobre o passe deve ser prenúncio de uma terceira elaboração, que incorpore o desenvolvido nestes últimos anos, de proeminência do real e da consistência do corpo. Deverá ser o passe do “parlêtre”, em um espaço topológico, diríamos discretamente, que lhe seja coerente.

E o ensino nesse país da psicanálise, é suficiente que seja feito pelo analista ensinante? Não. É necessário a todos aqueles em formação analítica receber uma gama de conhecimentos que facilite a tarefa de elaboração do que lhes ocorre ao se encontrarem com um psicanalista e com a psicanálise. É a posição de Sigmund Freud ao dizer em seu texto de 1926, “A questão da análise leiga”, no segundo capítulo: “… nós, na psicanálise, gostamos de nos manter em contato com o modo popular de pensar e preferimos tornar seus conceitos científicos úteis de preferência a rejeitá-los. Não existe mérito algum nisto. Somos obrigados a assumir essa linha, pois nossas teorias devem ser compreendidas por nossos pacientes, que, amiúde são muito inteligentes, mas nem sempre eruditos” (11). Devem ser compreendidas, paradoxalmente, para não perder sua virulência.

É esta posição freudiana que explica – capítulos depois, no sétimo – ele fazer a conhecida proposta de fundar uma ‘faculdade de psicanálise’ que, a par do muito que já é lecionado na escola de medicina e na de psicologia, acrescentaria “… ramos do conhecimento distantes da medicina e que o médico não encontra na sua clínica: a história da civilização, a mitologia, a psicologia da religião e a ciência da literatura… A menos que o analista esteja bem familiarizado com essas matérias, ele nada poderá fazer de uma grande massa de seu material” (idem, p. 278).

Isto nos leva a um terceiro ponto: a crise da avaliação.

3º) A CRISE DA AVALIAÇÃO. Serei sucinto. O que encontramos no Brasil, hoje? Destaco duas fortes tendências: primeiramente, a universidade. Provavelmente facilitada pelo qüiproquó das instituições analíticas, a universidade e seus representantes se oferecem como a paz no saber, a dignidade na conduta e a honestidade na pesquisa.

“A universidade é a instituição que há mil anos vem se empenhando no trabalho do ensino e da pesquisa” diz Manoel Berlink, representante no Brasil da ‘Psicopatologia Fundamental’. “A universidade sendo uma unidade na diversidade não se baseia em um único mestre, mas na comunidade de trabalho visando o conhecimento da natureza. Os mestres universitários, sempre plurais, são tão mais reconhecidos quanto se empenham na produção de um ambiente de estudo e investigação de objetos enigmáticos existentes na natureza” (12).

Para esse autor, sociólogo de formação, mesmo PhD, podemos depreender que a universidade é harmonizadora das transferências e Freud adoraria ser chamado de Professor (13).

Em segundo lugar, salientaria a união dos Conselhos de Psicologia. No início de abril, em São Paulo, foi apresentada uma proposta que já chega assinada por múltiplas autoridades brasilianas, da constituição de uma “Associação Brasileira de Psicoterapia”.

Entre alguns desígnios deste rebento, de futuro promissor, estão: a definição de quem é charlatão; a determinação de protocolos clínicos a serem adotados oficialmente no país; a classificação dos sintomas psíquicos e a especificação dos melhores tratamentos para cada um deles; uma articulação entre os Conselhos de Psicologia e as ditas melhores universidades, com a pretensão de gerar pesquisas de alto valor científico (sic) que diminuirá, sempre conforme os proponentes, o retardo dos estudos mentais no Brasil e, “last but not least”, a criação de um tribunal superior de arbitragem (14).

É necessário se acrescentar a esses dois exemplos o atual projeto de lei que tramita no Congresso Nacional, de autoria do deputado Simão Sessim, que abordei em recente trabalho (15).

Frente a isso, difícil concordar com aqueles que não querem nada saber do que se passa atualmente na Europa, mais especificamente na França, supondo que estamos muito longe dos problemas de lá. Diria que, infelizmente, talvez estejamos mais adiantados. É curioso notar que na França são os médicos que avaliam mal os “psis”, enquanto no Brasil, é uma parte dos próprios “psis” que avalia mal a outra parte, como vimos acima. Deixo ao debate.

4º) UMA PROPOSTA. Nada de errado em dizer que os analistas devam explicitar e transparecer a sua práxis. Não era outro o intuito de Freud, na já referida questão d’ “A análise leiga”. Há alguns anos, treze, se me basear nos documentos, propus a Jacques-Alain Miller a constituição de uma espécie de universidade do Campo Freudiano. Ele respondeu que, naquele momento, isso poderia inquietar um meio muito sensível à liberdade do seu fazer. Em continuação, nos últimos dois anos tive algumas conversas com Graciela Brodsky, no mesmo sentido, desde que ela assumiu a Delegacia Geral da AMP.

Considero que as mudanças anteriormente comentadas no seio da psicanálise, e os atuais avanços dessas tentativas de “identificação com o agressor”, sejam elas universitárias ou conciliares, forçam-nos a uma tomada de posição.

Alinhavo algumas considerações:

a) É interessante criar uma “faculdade de psicanálise” – repetindo as palavras de Freud – se com isso pudermos garantir minimamente e reconhecer socialmente essa formação;

b) Não há porque imaginar que as dissidências pessoais que incomodam o trabalho das escolas sejam minoradas ao se fazer uma faculdade, podem ser pioradas. Mas esse molho tem também aspecto formativo.

c) Já existe ao menos um projeto, do meu conhecimento, de um ‘instituto de altos estudos em psicanálise’, proposto em Paris por René Major. Lendo esse documento, pareceu-me importante ressaltar que, se uma “faculdade” for factível de ser criada, simultaneamente será necessária a criação de uma instância a ela articulada, mas não dependente, formada por analistas ensinantes e por ‘profissionais do incompleto’ (16) que mantenham viva a chama irrequieta da psicanálise, fazendo com que o saber gerado e transmitido nessa faculdade seja a essa chama submetido e não, ao contrário, como soe acontecer, seja um sopro que a apague.

________________________

(1) Conferência na abertura das atividades da série “O que pensa a EBP sobre a formação do analista”, em 22 de abril de 2004, no Rio de Janeiro.
(2) Seminário VII, A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
(3) Seminário XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
(4) Seminário XI, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, pp. 10 e ss.
(5) A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 15.
(6) Seminários de Zollikon. Petrópolis: Vozes, 2001.
(7) “L’insu que sait de l’une-bévue, s’aile a mourre”. Seminário XXIV, sessão de 18 de janeiro de 1977. In Ornicar? Bulletin périodique du Champ freudien. n. 15, pp.5-9.
(8) Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 2.
(9) “Ato de fundação”, de 21 de junho de 1964. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 235-247.
(10) « Les contre-indications au traitement psychanalytique ». In Mental – Revue Internationale de santé mentale et psychanalyse appliquée. « Les indications de la psychanalyse », n. 5, julho de 1998, pp. 9-17.
(11) Obras Completas, vol. XX, Standard Edition, junho de 1976, p. 222.
(12) Pulsional – Revista de Psicanálise, n. 162, outubro de 2002, p. 4.
(13) Pulsional – Revista de Psicanálise, n. 157, maio de 2002, p. 6.
(14) Muitas dessas propostas estão apresentadas na entrevista de Luiz Alberto Hanns, “Regulamentação em Debate”, publicada na revista do Conselho Federal de Psicologia: “Psicologia, Ciência e Profissão – Diálogos”, n. 1, abril de 2004: “Psicoterapia – O futuro do campo em debate”.
(15) “A sensibilidade brasileira: regulamentação da psicanálise”,
Conferência proferida na Jornada Excepcional da Escola da Causa Freudiana, em Paris, em 11 de janeiro de 2004, no Palais des Congrès. C.f.: Confira aqui.
(16) Cf. Forbes, J. Da Palavra ao Gesto do Analista. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, pp. 110 e ss.