/De Andréa Naccache, sobre o “Livre noir de La psychanalyse”

Na Espera de Uma Boa Crítica Atual

O jornal “Nouvel Observateur” noticiou no dia 1 de setembro o lançamento de um “Livre noir de la psychanalyse” – “Livro negro da psicanálise” – que reúne um grupo de autores dedicados a detratar Sigmund Freud.

Sob o título “É preciso acabar com a psicanálise?”, a notícia do “Nouvel Observateur” reconhece o livro como parte do movimento das diversas orientações psi na França, em vista a influenciar as políticas do Ministério da Saúde. O jornal cita trechos de diversos artigos do livro; relembra – ainda que muito brevemente – os grandes críticos da psicanálise do século passado; e chama um psicólogo comportamentalista para contar histórias sobre o homem, Freud, diante de um historiador da psicanálise.

Pensei em comentar esse acontecimento editorial de três ângulos. Primeiro, o do próprio livro, como apresentado. Depois, buscando uma perspectiva da crítica da psicanálise. Enfim, considerando a clínica.

Do Próprio Livro

O livro contém artigos com críticas contraditórias. Algumas delas: reclamar do processo de pesquisa e publicação de Freud, porque ele mudava de posição, questionava-se em cartas e às vezes em seus relatos dos casos e revia conceitos; ou reclamar, ao contrário, que Freud era dogmático. Reclamar que Freud só demonstrou dificuldades de tratamento e de cura dos casos que relatou – Freud relatava os casos nos quais era levado a gerar e rever conceitos -, sem ter sucesso justamente naqueles casos; ou reclamar, ao contrário, que Freud glorificava os resultados da sua clínica. Reclamar que o problema da psicanálise foi generalizar respostas e tratamentos, ao falar em “inveja do pênis”, angústia de castração, sexualidade, como conceitos científicos a serem aplicados a todos os pacientes; ou reclamar, ao contrário, que Freud atuava à deriva, por reiniciar seu processo interpretativo a cada caso, fundando sua clínica apenas na orientação geral de uma metapsicologia que não cabia nos quadros do cientificismo da época.

Em um projeto de crítica a Sigmund Freud como esse, interessante é que o que menos importa é o próprio Freud, seus conceitos e suas práticas. Que outro pensador e clínico não poderia ser objeto desse mesmo ataque? Skinner? Boss? Na perspectiva de seu próprio juízo pessoal, um criador vê suas ações ora com entusiasmo, hora com hesitação e auto-crítica.

Como pesquisador, Freud formou-se em tempos de positivismo, e privilegiou uma clínica em que o paciente fala “tudo o que vem à cabeça”. Como evitar a polêmica quanto à cientificidade das suas constatações? Freud trabalhou em tempos de moral sexual grave, em sociedades patriarcais, e privilegiou uma clínica em que se fala “tudo o que vem à cabeça”. Como evitar a forma dura com que as questões do sexo lhe apareceram no consultório?

Por isso, o “livro negro da psicanálise”, sem examinar a criação freudiana, é um livro do tamanho de si mesmo: não chega a fazer crítica da psicanálise, não tem alcance social ou clínico, pouco diz para um pesquisador da psicanálise que queira desenvolvê-la ou responder por ela. O livro “noir” é apenas um livro sombrio. Hoje, um exercício da maledicência. Mais um dos tantos livros que vendem porque trazem o nome do pesquisador Sigmund Freud.

Da Crítica da Psicanálise

Se pensarmos de um ângulo mais aberto, esse tipo de crítica da psicanálise que o “livro negro” faz é uma volta ao passado. Parece assumir os termos do debate que circundava o homem Sigmund Freud, nas comunidades que questionavam a novidade do “inconsciente”, que não queriam creditar-lhe uma descoberta, dizendo que – sim ou não – os sintomas das suas pacientes eram psíquicos, que – sim ou não – a remissão deveu-se ao tratamento feito por ele. Se hoje esse tipo de discussão ainda se repete, é mesmo entre aqueles que cultivam o “noir”. É que, para além do homem Sigmund Freud, a clínica se difundiu de tal maneira que muitos outros nomes se destacaram até hoje, a psicanálise provou estar além de um projeto pessoal.

Nesse sentido, há um segundo momento da história da psicanálise e também da sua crítica. Um momento em que os seguidores de Freud, tão diferentes como foram, permaneceram conduzindo uma clínica da fala, e seus críticos “noirs” tornaram-se cômicos, quando criticar Klein era valorizar as características de Lacan, criticar Lacan era valorizar as características de Winnicott e assim por diante. A psicanálise mostrava que permaneceria independentemente das características de Sigmund Freud.

Desde o pós-guerras, muito trabalho foi feito pelos seguidores de Freud e uma crítica de dimensões inteligentes e relevantes ganhou corpo. Foi esse o tempo de Foucault, Deleuze e Guattari, Sartre, que o jornal “Nouvel Observateur” deixou passarem tão rápido. Esses críticos observaram mais que as pequenas sombras “noirs” de uma obra: debateram a liberdade e a responsabilidade do paciente e do clínico, a criação possível de sintomas nas práticas psi, suas conseqüências sociais e culturais. São críticos que dispensam apresentação, reconhecidos pela grandeza, o rigor e a perspicácia de seus trabalhos, e pela elegância de seu estilo. São ícones da cultura, parte importante de uma transformação no pensamento ocidental no século XX. A quem quer ler uma crítica à psicanálise, é desperdício ler menos que eles.

Entre suas obras estão “O anti-édipo”, de Deleuze e Guattari; passagens do “História da Sexualidade”, de Foucault, (vide, por exemplo, o livro 1: “A vontade de saber”); e tantos livros de Sartre.

Hoje, na melhor das hipóteses, os “noirs” repetem algumas idéias desses grandes críticos. A questão é que no tempo de Foucault, Deleuze e Guattari ou Sartre, o mundo viveu uma transformação que eles captavam ou elaboravam, e que não passou à revelia dos psicanalistas. Lacan esteve com eles, na França. Desde então, importantes discussões psicanalíticas têm implicado em atualizações da clínica.

Como ignorar todo esse processo e ser “noir”? Ou: como ser “novo observador” sendo “noir”?

Os críticos pensadores deixam saudades. Com eles, os psicanalistas trabalharam muito, criando uma clínica que surpreendeu os questionadores de Freud, e respondeu aos novos tempos, onde a moral sexual, o positivismo cientificista de 1900 já não eram a questão primeira.

Assim a invenção freudiana de uma clínica da fala perseverou, já sem os rigores do setting, e para além das respostas do “Complexo de Édipo”, da lei paterna, das representações do falo, da inveja do pênis. Os críticos “noirs” não viram esse trem passar.

Hoje, já há toda uma nova clínica, considerando que a relação do ser humano com o saber e com o amor mudou na globalização. Por isso, é fundamental aos psicanalistas um debate mais intenso sobre a atualidade, com autores de outras referências.

No Brasil, Jorge Forbes tem promovido, com juristas, com filósofos, com arquitetos, com sociólogos, jornalistas, psicólogos e educadores da Europa e da América (desde os Estados Unidos até ao Sul do continente), discussões cruciais. É um movimento nesse sentido. Os críticos “noirs”, na sua recente publicação, perderam também esse trem.

Da Perspectiva Clínica

A clínica, enfim, continua existindo, a despeito dos sombrios incomodados. A competente crítica do século passado foi – e ainda é – muito lida. Ela faz parte da formação analítica (há, claro, clínicos que, como os críticos “noir”, parece que não a viram – estes clínicos fazem mais mal à psicanálise de hoje que os críticos “noir”).

Aparentemente, apesar da multiplicação de procedimentos médicos e terapêuticos, e de soluções práticas para os problemas da vida – separar-se, casar-se, mudar de emprego, publicar livros de críticas, aproximar-se sucessivamente do elevador até perder o medo, engolir a pílula a cada 12 horas, explodir prédios com aviões, enviar exércitos, beijar, presentear com bombons e flores, roubar, ser amável, dizer “não”, dizer “sim”, comprar um novo aparelho de celular, fazer uma cirurgia plástica, restringir as calorias, mandar para a cadeia ou para a cadeira elétrica – ainda assim as pessoas querem falar sobre o que fazem e podem fazer, sobre o que pensam disso, e a clínica psicanalítica permanece.

Deve surpreender os críticos “noirs”: há tanto o que fazer, e as pessoas insistem em querer falar! Falar mais do que um amigo pode ouvir, mais do que a família pode entender, falar porque não se quer simplesmente agir ou ser paciente de uma ação: falar e experimentar o que é falar, ouvir-se e pensar um pouco mais, testar esse seu próprio limite.

As pessoas vão ao médico, ele faz a prescrição e algumas delas, ainda assim, pensam em falar. O terapeuta descobre o que condiciona um comportamento, o comportamento pode mudar, e, ainda assim, a pessoa quer falar! Fala porque não lhe bastam as soluções práticas, fala porque a pessoa pensa mais do que a prática exige e é exatamente nesse excedente, nesse excesso de fala, no além da prática, que o divã aparece. O divã, e o “falar mais”, existem para quem não quer ficar parado na estação de uma queixa ou de uma crítica repetida.

Por seu desígnio, portanto, os psicanalistas ainda aguardam dos críticos de hoje uma “observação nova”, uma palavra que fale mais do mundo atual.