/Pierre Rey com Jacques Lacan

 Trabalho apresentado por Elza de Macedo, no SAMPARIOCA II – Os finais de análise e suas provas, a partir do texto “Uma temporada com Lacan”, de Pierre Rey

Decidi trazer um pouco de Pierre Rey a este Samparioca II. Encontro aqui e ali menções a ele em textos de Jorge Forbes: em 2004, uma entrevista Pierre Rey, 20 anos depois. Agora, Encontro e Silêncio. Ontem, em sua defesa de tese, Jorge Forbes evoca o amigo, quando falavam que o problema da psicanálise vem dos psicanalistas. Retomo Uma temporada com Lacan[1], de Pierre Rey, o relato de sua análise. Da entrevista, realizada por Jorge Forbes, extraio aqui um ponto. Solicitado a dizer do lugar da psicanálise no mundo, Pierre Rey diz que é o lugar da demanda feita pelo mal-estar daquele que sofre; só se pode esperar a demanda. “Para o analista, basta esperar.” Não numa espera passiva, mas naquela que causa o desejo. Esse ponto remete à questão freqüente nas análises: a inversão da demanda – questão que temos discutido na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano. Nesse livro Uma temporada com Lacan o autor deixa claro que o analista não cedia frente à tentativa dessa inversão por parte do analisando. Considero que apontar a demanda seja o índice de alguém que tem a experiência do que seja essencial em uma psicanálise. Chegar ao osso e manter essa demanda até o fim. Há muita rolha para ser colocada aí. Pierre Rey usava reiteradamente a do dinheiro. E Lacan faz com ele como que um terrorismo com o pagamento das sessões. Quando dizia “Hoje não tenho dinheiro para pagar”, a exaltação de Lacan era para Pierre Rey um eletrochoque. Ficava em pânico. Cabe ao analista manter viva essa demanda para que o analisante não ceda em seu desejo. Miller diz que o que uma análise demanda é amar o inconsciente. Pode-se acrescentar: e que não exclua o real. A passagem de analisante para analista mantém essa demanda como essencial. Cito Pierre Rey: “Ao invés de submeter meus desejos a meus meios, decidi pagar o preço: criar os meios para meus desejos.” … Descobrimos que o que desejávamos era precisamente o que temos.

Até os 30 anos, Pierre Rey era um play-boy, diletante talentoso, convidado para as festas da alta sociedade, sua presença chamava atenção. Ele escrevia crônicas para um jornal, daí ganhando seu sustento; fazia despesas além de seus recursos, contraindo dívidas; muitas festas; jogava 12 horas por dia; era fóbico; seus valores eram uma confusão; era um estudante crônico, assim garantindo seu lugar na residência para estudantes; e estava sempre perdendo o emprego. “Vivia perdido no próprio esgotamento de meu gozo – trapaceando comigo mesmo quanto à natureza de meu desejo.” (p. 123) Diz: “Eu não aguentava a fratura entre o que eu era e o que parecia ser.”(p. 92)

Ele tinha um amigo médico, o Gordo, que freqüentava os seminários de Lacan. Falava tanto nele e queria muito que Pierre Rey também fosse aos seminários. Ele resistiu, mas comprou os Escritos. Inicia a análise com Lacan. Deve ao Gordo esse encontro. Na primeira entrevista fala de nomes importantes de seu relacionamento e de seu trabalho no jornal. A sessão foi muito longa, “Lacan estava encantado.” Pierre Rey mal sabia o que o esperava. Pierre Rey sem dinheiro para pagar a análise, tinha dívidas antigas de jogo, mas o elemento obsessivo era Lacan. “Eu era movido pelo desejo de lhe pagar.” Saíram na França dois best-sellers. “Decidi no ato escrever o terceiro. Por que não eu?” Penso que seja este o ponto de virada. Ele fala com o editor Robert Laffont. Estava em análise porque não tinha coragem de nomear seu desejo. Escreveu o livro, 1200 páginas, em 13 meses. Sucesso. A partir daí passou a ter dinheiro e podia ir o quanto quisesse à Rue de Lille sem temer a fúria de Lacan. “Com a análise pude sentir a felicidade de ser vulnerável. Antes tinha um ar de ‘bello indiferente’ ”. (p. 124)

Pierre Rey não busca o controle da instituição, não está interessado em passe, mas passar ao mundo através da escrita o que foi sua análise. Logo após sua análise começa escrever – dois capítulos. Só nove anos depois, em 1989, ele termina e publica o livro, relato de sua análise. Percebe-se aí o que Miller diz quanto aos três passes – passe 1, quando se ultrapassou algo na análise; passe 2, comporta uma retroação sobre o 1; e passe 3, diante do público. Vejamos esta retroação no que diz Pierre Rey: “Agora, nove anos depois, quando escrevo estas linhas percebo a que ponto eu revivera os sintomas de angústia e regressão que conheci no desenrolar de minha análise. […] Quando escrevo estas últimas páginas, uma bola obstrui-me a garganta. O que estava em jogo nessa bola era o ato de escrever. O temor inconsciente de chegar ao fim, de reviver como uma morte o término de minha análise, a morte de meu pai, do Gordo, a morte de Lacan. Assim que os verbalizei, os sintomas desapareceram.

Se antes ele escreve um best seller para ganhar dinheiro para pagar sua análise, no relato de sua Temporada com Lacan ele escreve porque a escrita se impõe.

Sem nenhuma preocupação com burocracias, Pierre Rey considera que fez uma análise. Cito-o novamente: “Ao cabo de uma travessia que durara dez anos, o passador levara o passante-passageiro são e salvo a uma margem outra.” Eu diria, invocando Guimarães Rosa[2], à terceira margem, “mais além…”.

 

Rio de Janeiro, 18 de setembro de 2010

Elza Macedo

 


[1] REY, Pierre. Uma temporada com Lacan, Rio de Janeiro: Rocco, 1990.

[2] ROSA, Guimarães. Primeiras estórias.