/Uma lição de vida – quando a poesia explica

 

Memória da reunião de 27 de março de 2012

Claudia Riolfi

“Aprender a viver”, propôs Luc Ferry, para quem a filosofia pode fornecer um caminho além do pai.[1] Para além da aventura intelectual, haveria, mesmo, alguma coisa a ser aprendida? Iríamos, neste livro, encontrar subsídios para esclarecer porque e como é necessário achar uma transcendência para dar sentido à vida? [2] Na outra obra de Ferry discutida no módulo, ele havia localizado o referido sentido na família. Falava da biologia? Sua referência limitava-se à família de direito ou incluía, também, as de fato?

No começo da discussão da obra atual, um ponto de parada havia fornecido subsídios para auxiliar na compreensão da extensão do conceito de “transcendência” para Ferry. Ao estudar o amor à sabedoria segundo os estoicos (pp. 29-58), tomamos contato com sua recomendação de se esforçar para contemplar o caráter divino do mundo, ao mesmo tempo, imanente e transcendente. Lembremos: para os estoicos, o “divino” é a chave da teoria. Sendo radicalmente superior e exterior aos homens, o divino é transcendência na imanência.

Pois bem, em nossa reunião de 27 de março, eu levava na mala as indagações apresentadas no parágrafo precedente. Assim, ao aceitar o passeio pela Alemanha, acompanhado por Friedrich Wilhelm Nietzsche e Dorothée Rüdiger, meu principal interesse era descobrir se, ao abrir mão do “divino”, Nietzsche havia passado a desprezar a existência de uma instância superior e exterior os homens. Carlos Genaro, o cronista que me precedeu, havia, abrindo a reunião, testemunhado seu interesse pela “luz do dia, que se anuncia sem dizer exatamente onde está”. Sensível, escreveu um trabalho que, transpirando poesia – aproximada, por ele, ao gaio saber de Niezsche – foi seguido pela leitura de duas peças de sua autoria, tratando, respectivamente, do Carpe dien e do amor fati.

Tendo como foco a busca de um princípio ordenador de valores que nos ajudasse a ultrapassar o caos, Carlos aludiu a suas dúvidas em relação à expressão “vontade de poder”, que também me incomodava. Localizando no texto, em impressionante tempo recorde, um fragmento que respondia a meu desconforto com relação a esta expressão, Forbes leu a definição dada por Ferry a esta expressão, que, para ele, designa: “o desejo profundo de uma intensidade máxima de vida, de uma vida que não seja mais empobrecida, enfraquecida porque dilacerada, mas, ao contrário, a mais intensa e a mais viva possível.” (p.166).

Após a leitura do excerto, JF comentou que, em sua avaliação, a “vontade de poder” de Nietzsche era “escandalosamente próxima” à ética do desejo de Lacan, expressa por meio da fórmula: age conforme o desejo que te habita. Lembrou que, ao comentar a respeito desta ética, Lacan (1959-1960)[3] privilegiou os termos “coragem” e “entusiasmo”, termos que, na visão da maioria dos presentes, remetia à vontade de poder. Ato contínuo, passou à leitura dos últimos parágrafos do capítulo, nos quais se lê uma reiteração do critério “intensidade” para definir a vida boa.

Liége Lise opinou: a imanência, aquilo que permanece, pode ser aproximada da vontade de poder. JF aproveitou a deixa para fazer uma propaganda do próximo capítulo a ser discutido, cujo tema principal é o humanismo contemporâneo. Lembrou-nos que este último é, marcado, justamente, pela possibilidade do encontro de uma transcendência para dar sentido à vida que não esteja subordinada nem a particularidades grupais nem a valores universais. Ariel Bogochvol acabou responsável por apresentá-lo.

Com relação à “cartata” de Carlos Genaro, destaco sua generosidade. Levantou a bola para Dorothée Rüdiger cortar elencando, no fim de seu texto, as oito dúvidas de JF que lhe tinham sido legadas como lição de casa. Cinco destas questões foram respondidas e debatidas.

Ao longo do debate, por assim dizer, tivemos uma conversa entre homens. Calorosamente. Ariel Bogochvol o fez do lugar de quem sente asco pela posição de Nietzsche. Alain Mouzat, praticamente, do lugar de que, sente pena: para ele, Nietzsche é alguém que se aproxima de Lacan, mas é muito mais solitário. Carlos Genaro, ainda interessado na poesia, colaborou no debate a respeito das eventuais semelhanças entre a psicanálise e a retórica, privilegiando a forma por meio da qual se diz. JF aderiu, lendo fragmentos de um de seus livros (FORBES, 1999)[4] no qual, descrevendo o psicanalista como um mestre da retórica, postulou que ele esvazia a linguagem da carga semântica de seu conteúdo para valorizar a dimensão do gesto.

A conversa, sem dúvida, estava boa, mas, ainda assim, eu não tinha encontrado nada que justificasse o título “Aprender a viver”. Curiosamente, este feliz encontro foi suscitado pelo debate de… uma letra de samba: “Solução de Vida (Molejo Dialético)”, de Paulinho da Viola. Ocorre que Dorothée destacou a semelhança desta canção com o amor fati de Nietzsche. Alguns colegas não concordaram. Sublinharam o pessimismo do sambista, presente, por exemplo, em “E no fim/ Tudo é sonho perdido/ Só desatino, dores demais.”. JF, em especial, achou que Paulinho atravessou o samba.

Foi aí que todo mundo ganhou em aprendizado. Não se limitando à crítica do sambista, Forbes resolveu apresentar outra solução de vida (a do poeta). Antes de passar a sua lembrança, lembro que, ao longo da reunião, Jorge já havia destacado passagens que permitiam compreender que Ferry correlaciona, inequivocamente, a possibilidade de ser objeto de amor com a singularidade (p. 230), “que o distingue e o torna sem igual” (p. 231), estando ligado ao fato de que, no objeto, pode ser considerado a sua essência mais íntima (p. 229), ou seja, àquilo que, para além de todas as transformações impostas pelo tempo e pelas contingências da vida permanece (sua imanência).

Da leitura destes excertos, deu pra concluir que o amor não se relaciona com os atributos do objeto amado que podem ser nomeados. Ponderamos que o amor se ancora naqueles atributos que, para serem aludidos, demandam a invenção de um neologismo. Se assim não fosse o amor estaria ligado à dimensão do particular, e não do singular.

Prevendo que, neste ponto da leitura, alguns colegas podem estar com cara de paisagem, passo a um exemplo. Eu até posso dizer que amo meu filho caçula por sua inteligência aguda, por seu humor refinado e pela delicada beleza. Inclusive, isso tudo é provavelmente verdade. Entretanto, esta avaliação não significa que eu amaria, do mesmo modo, qualquer outra criança portadora destes três traços. Não se ama em grupo! Então, se amo Domenico, isso se deve, digamos, a algo que marca sua diferença, a algo que, variando, é sempre a mesma coisa. Como nomear? Digamos que amo Domenico por sua “domeniquice”. Como nem sei se, enquanto escrevo, a tal “cara de paisagem” de fato se materializou entre os colegas, deixemos minhas divagações para lá.

Caminhemos para o relato do final da reunião e, para tanto, relembremos de Carlos José de Figueiredo, avô materno de Jorge Forbes, morto aos 21 anos, vítima da gripe espanhola. Forbes confidenciou que Carlos José havia sido engenheiro, advogado e poeta e, então, se propôs a ler um fragmento de seu trabalho poético, cujo título não anotei.

A leitura foi feita em grande estilo, intensamente. Ressoou. Ressoou a tal ponto que, durante sua execução, fiquei conciliada com a lição que Ferry havia se proposto a nos dar. Permitiu retomar sua questão por meio do exemplo. Onde Carlos José de Figueiredo tinha buscado encontrar uma transcendência para dar sentido à vida? Estaria este aspecto presente no fragmento da poesia lido por seu neto? Teria sido ele bem sucedido na tal transcendência da imanência?

Ora, na cena descrita na poesia, o voto de “que, alguém, um dia, vá prosseguir” marcava a batida dos passos que Carlos José arrastava na areia em busca de um “raio de luz”. Prosseguir o quê? – podemos perguntar. Não ficaríamos sem resposta: “o que de mim ficar cantando no meu verso”, esclareceu o poeta.

Invejável, esse tal Carlos José! Morreu jovem, mas, antes disso, teve tempo de achar um veículo que garantisse, para além de sua sobrevivência física, a transcendência de um “X” que, para ele, dava sentido à vida. No que consistiria este “X”? – perguntariam, ainda, os mais curiosos.

Mas que dúvida! Evidentemente, uma, “carlosjosezisse”! Sua característica principal seria a de servir de amparo, por assim dizer, de anteparo frente às calamidades do real. A cada um de nós, ele dirigiu uma espécie de dedicatória: “pelo verso meu, brandamente amparado/possa melhor, da treva, esconder seu rosto”.

Em tempos nos quais, dada a extensão das potenciais catástrofes pessoais causadas pelo poder dos meios técnicos, as “trevas” podem não só ser extensas, como costumam gerar efeitos amplamente alardeados, ter onde se amparar quando uma de suas faces se faz presente em nossa vida não é pouco. De fato, a reunião de 27 de março foi uma lição de vida.

 


[1] FERRY, Luc. Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

[2] FERRY, Luc. La révolution de l´amour. Pour une spiritualité laïque. Paris: Plon, 2010.

[3] LACAN, Jacques. (1959-1960). O Seminário. Livro 7. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

[4] FORBES, Jorge. Da palavra ao gesto do analista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.